Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cargo de presidente viciou Bolsonaro em ser manchete nos jornais?

(Foto: Brasil de Fato)

No alvorecer dos anos 80, no início da minha carreira de repórter, estava com dificuldade para fechar uma matéria investigativa. Sabia que o fato havia acontecido. Mas não tinha como provar. Sentando em um boteco perto do jornal ouvi de um velho repórter o seguinte conselho. “Procura um ex-dirigente que na sua época vivia nas manchetes e que agora está vendo a grama crescer na sua porta porque não é mais procurado pela imprensa. Ele vai te ajudar, porque é viciado em ser notícia nos jornais”. Ajudou mesmo. Fiz esse nariz de cera para entrar no assunto sobre o qual vamos conversar.

Temos publicado no meio dos textos que o presidente Jair Bolsonaro (PL) teme, caso não seja reeleito, ser condenado e preso porque os processos que correm contra ele na Justiça irão para a primeira instância, onde o trâmite é mais rápido do que no Supremo Tribunal Federal (STF). Nunca me detive para pensar no assunto. Depois da entrevista dele no Jornal Nacional, (23/08) da Rede Globo, me dei conta de um fato.

Bolsonaro é viciado em ser manchete nos jornais. O seu maior medo, se perder o emprego, é não pautar mais os noticiários no Brasil e em vários outros países. Lembro que durante as três décadas em que foi deputado federal pelo Rio de Janeiro Bolsonaro era um parlamentar sem expressão e considerado exótico por nós jornalistas. Sempre que não se tinha um assunto relevante era só falar com ele que saía uma manchete enaltecendo, por exemplo, os torturadores dos presos políticos do regime militar (1964 a 1985). Faz parte da biografia dele uma conversa que teve com os seus colegas na Câmara dos Deputados que foi manchete internacional por defender torturadores. Consta que mostrava o jornal para os colegas e se gabava. Sempre foi defensor daquele dito popular: “falem bem ou mal, mas falem de mim”. Imaginem o seguinte.

De um parlamentar discreto que corria atrás dos jornalistas para tentar impressioná-los com uma pauta maluca, assim que assumiu o seu mandato de presidente, em 2019, Bolsonaro viu os jornalistas passarem a correr atrás dele. Tudo que ele diz, inclusive as coisas mais absurdas, vira manchete, porque é dito pelo presidente da República. Lembram-se da pandemia de Covid-19? Por ter feito do seu negacionismo em relação ao poder de contágio e letalidade do vírus uma política de governo, Bolsonaro virou assíduo frequentador das manchetes dos principais jornais do mundo. Falei sobre o assunto em 26 de março de 2020 no post Bolsonaro foi à guerra contra o coronavírus pelas manchetes dos jornais.

Nos dias atuais, embora o seu maior adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), esteja à frente nas pesquisas de intenção de voto, com reais chances de ser eleito no primeiro turno, é Bolsonaro que pauta a imprensa nacional e internacional por ter comprado uma guerra contra as urnas eletrônicas, um sistema comprovadamente seguro. Líderes mundiais, como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (democratas), têm falado sobre o assunto. Por falar nos americanos, os jornalistas dos Estados Unidos tiveram um problema semelhante com o então presidente Donald Trump (republicanos), que é admirado por Bolsonaro.

Trump, durante o seu governo (2017 a 2021), manteve a imprensa focada nele dizendo asneiras. Fora da presidência, continuou nas manchetes por conta do seu envolvimento na invasão do Capitólio (Congresso) por seus aliados, numa tentativa de evitar a posse de Biden – há matérias na internet. Caso o presidente do Brasil não seja reeleito, ele vai se manter nas manchetes até o último minuto, ameaçando não sair do cargo. Se for reeleito, no dia seguinte ao da posse arrumará um inimigo para atacar e permanecer na primeira página dos noticiários.

Lembro que o nosso maior desafio nos meses iniciais do governo do presidente da República era lidar com as bravatas ditas por ele que acabavam virando manchete. Lembro de ter descrito que a administração federal estava funcionando como uma montanha-russa, tal era a enxurrada de notícias nas redações. O principal assunto do dia não ficava muito tempo em destaque. Os comentaristas de política e economia tentavam enquadrar as falas presidenciais nos modelos que usavam com outros presidentes. Claro que não funcionava. Enquanto Bolsonaro mantinha os jornalistas ocupados com um montão de asneiras, o Brasil real afundava em uma crise sanitária, causada pela Covid. Ou seja, o país das manchetes dos jornais não era o Brasil da realidade.

Não por outro motivo que a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid, foi tão popular, ao ponto de ser acompanhada pelo público como se fosse uma novela de sucesso. Os senadores conseguiram colocar as digitais do governo nas 670 mil mortes de brasileiros pelo vírus, como prova o relatório final de 1,3 mil páginas da CPI, um documento para o futuro saber o que aconteceu realmente no país.

Fica a pergunta. Era possível a imprensa deixar de lado as falas presidenciais e focar na realidade dos brasileiros? Não, porque em qualquer parte do mundo o que a maior autoridade do país fala é notícia. Essa realidade está mudando graças às novas tecnologias que facilitaram a vida dos repórteres e dos sites, tipo o The Intercept Brasil, que denunciou as falcatruas da Operação Lava-Jato, e o Metrópoles, que publicou uma extensa reportagem mostrando uma rede de empresários que estava tramando um golpe caso Lula vença as eleições.

Lembro agora do nariz de cera que fiz ao abrir a nossa conversa. Quem sabe no futuro, quando Bolsonaro estiver vendo a grama crescer na porta de casa, porque não será mais procurado pelos jornalistas, um repórter sortudo tentará saber dele os segredos da sua administração. E ele abrirá o baú e contará tudo só para voltar às manchetes. Quem sabe?

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.