No seu último encontro, em Genebra como alta comissária com os jornalistas internacionais correspondentes na ONU, Michelle Bachelet mostrou preocupação com as eleições brasileiras, diante da insistência do presidente Bolsonaro em rejeitar as urnas eletrônicas como confiáveis e atacar o Poder Judiciário, mantendo no ar a suspeita de estar preparando um clima de agitação e de não aceitação do resultado das urnas, caso seja derrotado.
Bachelet, ex-presidente chilena, deixará, na terça-feira, a direção do Alto Comissariado da ONU dos Direitos do Homem, que ocupa há quatro anos. No seu último encontro com a imprensa, o tema mais abordado foi o esperado relatório sobre os abusos cometidos pelo governo chinês contra a minoria uygur, depois de sua comentada viagem à China.
Mas foi também a oportunidade de falar sobre o Brasil, já que o presidente Bolsonaro, desde sua eleição, tem sido um tema de preocupações para Bachelet, pelas suas reiteradas declarações favoráveis à tortura, pelo seu governo de extrema-direita e pelas atuais ameaças de não respeitar o resultado das eleições caso não seja reeleito, a pretexto de “não serem confiáveis” as urnas eletrônicas.
Ainda em setembro de 2019, em resposta às primeiras críticas feitas por Bachelet na ONU, o presidente Bolsonaro, numa provocação publicada com destaque pela imprensa europeia, glorificou o antigo ditador chileno Augusto Pinochet, responsável pela prisão, tortura e morte do pai de Michelle. Pinochet havia também prendido a mãe e a própria jovem estudante Michelle que, ao ser libertada, se exilou e completou seus estudos de medicina na Austrália.
No seu relatório sobre aquele ano ainda incompleto do governo Bolsonaro, Michelle Bachelet já acentua que “o espaço democrático no Brasil estava se reduzindo, a violência policial estava aumentando e que os defensores dos direitos humanos estavam sob ameaça”. Entre janeiro e junho daquele ano, a polícia do Rio e São Paulo já havia assassinado 1291 pessoas, dizia o relatório, enquanto se arrastavam as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista.
Nesse seu primeiro relatório sobre o Brasil, Michelle Bachelet acentuava que a violência policial ” afetava desproporcionalmente os afro-descendentes e as pessoas vivendo nos bairros marginais. Vemos um aumento significativo da violência policial”. Bachelet criticou também as reiteradas defesas do golpe militar de 1964 pelo presidente Bolsonaro, acentuando que “a negação dos crimes de Estado poderia levar à impunidade e reforçar a mensagem de que os agentes do Estado estão acima da lei”.
Outros relatórios com esse mesmo tipo de denúncias foram apresentados à ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, com quem a Alta Comissária da ONU se encontrou pessoalmente algumas vezes. Denúncias que infelizmente não surtiram nenhum efeito. Bolsonaro reagiu ao seu estilo agressivo, mas nada fez para melhorar a imagem da nova política brasileira, posta a nu pela ONU. Passados quase quatro anos, praticamente todos os países democráticos confirmaram as denúncias da ONU, catalogando Bolsonaro como líder de extrema-direita, na mesma linha do presidente Orban da Hungria.
Desta vez, Bachelet mostrou muita preocupação com a situação política brasileira e focou suas preocupações nos múltiplos ataques do presidente Bolsonaro ao Judiciário. Ela também faz parte, embora sem nomear claramente, dos que temem a ocorrência de uma tentativa de golpe no Brasil. Ela viveu o golpe de Pinochet e sabe como foi armado e articulado.
“O presidente Bolsonaro intensificou seus ataques contra o sistema judiciário e o sistema de voto eletrônico”, disse ela aos jornalistas. “O que me parece o mais inquietante é o presidente apelar para seus seguidores protestarem contra as instituições judiciárias”.
Para Bachelet, um presidente precisa respeitar os outros poderes da República, o Judiciário e o Legislativo. “Pode-se não estar de acordo com as decisões tomadas pelo Judiciário e o Legislativo, pode-se também dizer isso, mas é preciso respeitá-las. Não se pode fazer coisas capazes de aumentar a violência e o ódio contra as instituições democráticas, que devem ser respeitadas e reforçadas. Não se deve tentar minar as instituições com discursos fortes”.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.