Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cobertura eleitoral ignora agenda do cidadão comum

(Foto: EA GRAPHER/ Pexels)

Quase 50 anos depois de ter sido lançada, a ideia da valorização da lista de problemas, desejos e necessidades do eleitor começa a ser adotada em várias partes do mundo, contrastando com o que acontece na grande imprensa brasileira.

A chamada agenda cidadã surgiu em meados dos anos 70 nos Estados Unidos quando alguns jornais regionais começaram a consultar pessoas comuns para saber quais os seus principais interesses e necessidades às vésperas das eleições de 1976, vencidas por Jimmy Carter. 

Grupos de repórteres e editores de jornais como o Hartford Courant, no estado norte-americano de Connecticut, passaram a conversar com eleitores de bairros pobres e de classe média baixa para saber o que eles gostariam que os candidatos falassem em seus pronunciamentos. A iniciativa acabou gerando listas de perguntas a serem respondidas pelos políticos.

Os jornalistas passaram então a organizar reuniões de candidatos com moradores de bairros pobres tendo como roteiro as listas de perguntas. As respostas acabaram alimentando reportagens que lograram um aumento de 40% na tiragem do Hartford Courant, especialmente na periferia da cidade de Hartford, onde a circulação do jornal vinha caindo. Mais tarde, em 1992, o mesmo projeto foi testado pelos jornais Charlotte Observer (no estado da Carolina do Norte) e Wichita Eagle (estado do Kansas), ambos nos Estados Unidos.

Mas a experiência acabou sendo abandonada depois de uma enxurrada de críticas da grande imprensa norte-americana, especialmente o The New York Times e a revistas Time e Newsweek que acusavam os profissionais adeptos da agenda cidadã de ignorarem o dogma jornalístico da neutralidade e objetividade. 

 Quase meio século depois, a consulta direta às pessoas comuns volta a ser tentada, agora em diversos países do mundo, como Austrália e Irlanda,  ao mesmo tempo que nos Estados Unidos, organizações como a Universidade de Nova Iorque (CUNY) , Hearken (especializada nas relações entre jornalistas e o público), Trust Project (credibilidade informativa) e o agora “hibernado”  Membership Puzzle Project (relações com leitores) divulgaram um manual sobre como construir uma agenda cidadã.

O debate eleitoral

O ressurgimento da ideia acontece num momento em que a imprensa enfrenta dilemas complicados na cobertura de eleições. Dilemas resultantes basicamente da perda do monopólio no condicionamento da opinião pública diante do crescimento das redes sociais e do jornalismo autônomo. Há décadas, a imprensa brasileira e internacional está atrelada à agenda do establishment político/empresarial dando prioridade máxima aos temas que interessam a este segmento sócio/econômico. 

Na atual campanha eleitoral brasileira, só para citar um exemplo atual e no qual somos protagonistas, as entrevistas globais com os candidatos presidenciais mostrou como temas como fome, miséria, desemprego e desigualdade social tiveram um espaço ínfimo em comparação às questões sobre corrupção no governo, privatizações, teto de gastos, inflação, dólar, déficit público, orçamento secreto, centrão, judicialização da política e confiabilidade das urnas eletrônicas. Todos são temas que interessam diretamente a empresários e quem está metido na política em Brasília.

Quem frequenta um boteco na periferia de cidades grandes e médias se defronta com preocupações bem distintas. Nestes ambientes, o que se discute é a disparada dos preços, a estagnação dos salários, dívidas com aluguel, redução da qualidade de vida, insegurança, como conseguir uma vaga na escola pública, falta de creches, violência contra mulheres, só para dar os casos mais comuns. 

A diferença de agendas está fortemente condicionada pela desigualdade social, mas não é só isto. O ambiente social e a localização geográfica das pessoas influenciam na lista de temas discutidos. Pesquisas feitas pelos editores do jornal Charlotte Observer identificaram que a insegurança e a limpeza urbana dominavam a agenda de debates nos bairros de classe média alta, enquanto o transporte público, saúde e educação predominavam nas áreas mais pobres da cidade de Charlotte.

O vácuo noticioso local

A imprensa tem também um outro papel no agravamento da desigualdade entre agendas noticiosas. Os grandes jornais de circulação nacional obviamente privilegiam os temas vinculados à disputa pelo poder federal. Mas é no nível local que as pessoas debatem os problemas que as afetam diretamente. A diferença é inevitável porque a agenda nacional debate temas amplos e globais porque o público-alvo cobre o país inteiro. Já no âmbito municipal, os problemas são específicos e locais, sendo discutidos por pessoas que a comunidade conhece.

O recente debate entre presidenciáveis na TV Bandeirantes mostrou claramente esta clivagem entre as agendas. Discutiu-se muito o orçamento secreto, verbas para a educação, violência contra a mulher, corrupção no governo federal e vacinação contra a Covid 19. Mas o cidadão comum trabalhando na informalidade, a mãe preocupada com a falta de vagas em creches e escolas públicas ou o aposentado inseguro sobre seu futuro não encontraram soluções concretas nas respostas dos candidatos.

O problema é que temos uma imprensa nacional muito mais poderosa e um jornalismo local extremamente débil economicamente e muito dependente dos políticos e empresários municipais. Esta discrepância é um dilema para o relacionamento do jornalismo com as pessoas comuns e uma das causas da crise na imprensa convencional, que vem perdendo público desde o final do século passado. Para reconquistar a confiança e fidelidade do cidadão comum, o jornalismo e a imprensa precisam mudar de agenda noticiosa. 

Como criar uma nova agenda

Montar uma nova agenda noticiosa não é uma tarefa impossível, como afirma Jennifer Brandel, a executiva e criadora do projeto Heartken num artigo em coautoria com o professor Jay Rosen, da universidade municipal de Nova Iorque (CUNY).  Jennifer revela que dois passos são essenciais para mudar o relacionamento entre jornalistas e as pessoas comuns, nas pequenas e médias cidades, bem como na periferia das grandes metrópoles.  A primeira coisa é realizar uma pesquisa com uma amostra de moradores perguntando quais os problemas que mais afetam seu cotidiano. Depois, uma segunda pesquisa perguntando se eles gostariam que a imprensa os representasse ante os políticos.   Com estas duas respostas, já é possível montar uma estratégia de investigação dos problemas apontados e permitir que a imprensa organize reuniões de moradores para questionar candidatos sobre as questões levantadas.

Quem tiver interesse em mais detalhes pode encontrá-los no relatório Citizens Agenda Guide (Guia para uma Agenda Cidadã), do qual Jennifer e Jay são coautores (*). O jornal australiano Age criou um questionário geral que pode ser visto aqui e que serviu de base para uma série de outras pesquisas voltadas para a mudança de agenda noticiosa. A experiência bem sucedida do jornal irlandês Dublin Inquirer pode ser estudada no estudo de caso How the Dublin Inquirer set a citizens agenda

Até muito recentemente a maioria da imprensa mundial se recusava a admitir que sua agenda noticiosa estava associada aos interesses do establishment político empresarial, mas a crise do modelo de negócios está provocando uma mudança de posicionamentos. As questões ideológicas começam a perder relevância devido à necessidade financeira de reconquistar leitores, ouvintes e telespectadores. E um novo espaço começa a ser aberto para a imprensa local

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Nota: O relatório está em inglês, mas os interessados podem fazer uma tradução usando o Google Translator. É uma tradução tosca, mas compreensível.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.