‘Que merda: dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho.’
Com esta frase, o jornalista Boris Casoy comentou os votos de feliz 2010 de dois garis durante edição de 31/12/2009 do Jornal da Band. O comentário foi ao ar durante o intervalo comercial do canal devido a problemas técnicos ocorridos na transmissão do telejornal. Na edição do dia seguinte (1º de Janeiro) do mesmo telejornal, o âncora se retratou, pedindo desculpas por suas palavras ofensivas aos garis e aos telespectadores. O vídeo se encontra na internet (YouTube) e a repercussão, evidentemente, foi negativa.
O comentário do jornalista, algo impensável até mesmo num ambiente informal como numa mesa de bar, tomou uma dimensão enorme e ainda é cedo para avaliarmos o que acontecerá à credibilidade que Boris tem entre seu público. Porém, uma coisa é passível de afirmação – seu comentário registra preconceito que existe na mente do brasileiro referente a certas categorias profissionais e, consequentemente, aos seus profissionais.
País de raízes escravocratas, último das Américas a se livrar da escravidão, o Brasil destaca-se por sua elite pouco afeita ao trabalho criterioso, tanto doméstico, quanto o ‘de lucro’ (atividades profissionais). Deve-se isso em parte às raízes aristocráticas importadas da Europa, juntamente com um sentimento oligarca notado em setores da sociedade brasileira. Entre os representantes destes setores, poderíamos citar o clero católico, grupos distintos da política nordestina, grupos econômicos do sudeste do início do século 20, sem falarmos ainda de funcionários estatais de elite (juízes, diplomatas, oficiais militares e da polícia). Todos estes grupos defenderam e defendem seus privilégios com afinco notável, evidentemente graças ao prestígio social que representaram e ainda representam.
Crise de credibilidade
Tendo como perspectiva social a ascensão pelo privilégio, nada mais natural do que o desprezo institucionalizado pelo trabalho não qualificado ou semi-qualificado sentido entre nós, brasileiros. É comum estrangeiros de países desenvolvidos estranharem que qualquer pessoa da classe média para cima tenha empregada doméstica, mesmo que para isso tenha que sacrificar o orçamento. Também é comum entre os visitantes desses países desenvolvidos o estranhamento diante da estratificação social ainda reinante no Brasil, fruto evidente da injustiça social e desamparo aos que estão fora dos grupos privilegiados ou que não participam de ‘esquemas de apadrinhamento social’ (nomeação de partidários, ‘compadres políticos’, para cargos comissionados no legislativo ou executivo, comum em localidades onde a vulnerabilidade social é maior, como localidades agrestes, pouco desenvolvidas economicamente).
O Brasil, apesar dos avanços sociais dos últimos tempos e de conquistas em diversas áreas, como o fortalecimento da democracia e reconhecimento internacional, parece não ter percebido que não conseguirá que estes avanços perdurem caso não mude sua visão de sociedade e cidadania, tão impregnada de preconceitos e distorções. Ao debochar dos garis que voluntariamente expuseram seus rostos na televisão para desejar um singelo bom ano a milhões de brasileiros também anônimos, Boris Casoy retoca com cores já conhecidas o quadro do preconceito social, da exclusão social, patrocinada pelo desprezo ao trabalho (seja ele qual for) e ao trabalhador. Ao escarnecer desta categoria, já estudada e classificada como ‘invisível socialmente’, o jornalista (que inclusive representa uma classe atualmente profissionalmente precarizada) apenas mostrou o que não se deve fazer no desempenho da atividade jornalística, já há muito desgastada por posturas anti-éticas que colaboram com a corrente crise de credibilidade na imprensa.
Preconceitos odiosos
Se os telejornalistas imaginam o telespectador brasileiro como um ser manipulável e passivo como Homer Simpson (essa infeliz comparação com o personagem de desenho animado foi feita por William Bonner), talvez estejam enganados. E caso pensem que estão amparados pelos conglomerados midiáticos a que servem, esquecem-se que novas mídias surgem, como a internet, com suas inúmeras possibilidades de divulgação e análise do que ocorre nos meios de comunicação tradicionais. Não existe revista ou jornal sem leitor, televisão sem telespectador, rádio sem ouvinte. É graças a esta anti-ética jornalística que grandes jornais têm perdido leitores e emissoras telespectadores.
Boris Casoy parece ter se esquecido da ética jornalística, que é inseparável da ética do dia-a-dia, provavelmente devido à sua rotina profissional. Um bom remédio talvez seja uma reciclagem para revisar seus conceitos equivocados em relação aos garis e coletores e sua honra pessoal e profissional. Porque não há telespectador, por mais ‘incauto’ que seja (assim pensam eles de nós), que não perceba quando querem subestimar seu senso crítico, achando-o incapaz de perceber preconceitos odiosos sugeridos pela mídia, que deveria divulgar e analisar seriamente os fatos, e não distorcê-los.
Reciclagem para Casoy. Urgente.
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O pedido de desculpas de Boris Casoy (01/01/2010)
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Professor de Línguas portuguesa e inglesa, Taboão da Serra, SP