Às vésperas das comemorações do bicentenário da independência brasileira, a atuação do governo Bolsonaro fez com que a maior parte da mídia focasse suas atenções a assuntos como: a vinda do coração de D. Pedro I, recebido como chefe de Estado no Palácio do Planalto, desfiles militares e a iminência da realização de atos antidemocráticos apoiados pelo presidente. Porém, poderíamos aproveitar a data comemorativa para refletirmos sobre assuntos importantes relacionados ao significado da independência para populações cada vez mais ameaçadas nos dias atuais, como indígenas e negro, seja pela falta de compromisso do governo federal, por sua ineficiência ou por suas intenções em favorecer o grande capital, sacrificando populações historicamente oprimidas em nosso país.
A proibição legal da escravidão indígena na América Portuguesa ocorreu em 1758, mas as leis portuguesas ainda permitiam a escravidão africana nas colônias controladas por Portugal. Em setembro de 1822, foi proclamada a independência do Brasil e ao contrário da maior parte da América Latina, o processo resultou na constituição de uma monarquia que continuava admitindo a escravização de pessoas. Essa situação, inclusive, fez com que muitos países enxergassem nossa independência com desconfiança, recusando-se a reconhecer nossa emancipação em relação a Portugal. Somente em 1824 os EUA reconheceram nossa independência, movidos por interesses econômicos e comerciais. Já Portugal, só assinou o reconhecimento em 1825, por meio do Tratado de Paz e Aliança, pelo qual recebia contrapartidas do Estado brasileiro.
O Brasil foi o penúltimo país do mundo a emitir uma lei abolindo definitivamente a escravidão, o que ocorreu em 13 de maio de 1888, por meio da Lei Áurea, que possuía apenas dois artigos: um que abolia a escravidão e outro que revogava qualquer disposição em contrário à abolição. A situação narrada acima colocou os libertos brasileiros em uma situação bastante defasada e dramática em relação a praticamente o restante do mundo, já que a grande maioria dos países já havia abolido a escravidão há muito tempo. Além disso, a ausência de leis complementares e de políticas públicas que visassem garantir a inserção das pessoas outrora escravizadas e de seus descendentes em nossa sociedade contribuíam para a manutenção do status quo, ou seja, mantinham negros e indígenas marginalizados e sem oportunidades de se equipararem à situação dos brancos. Portanto, tanto o processo de independência, quanto o da abolição da escravidão não foram acompanhados de melhorias significativas nas perspectivas encontradas pelas populações historicamente subjugadas pelos brancos.
Para piorar a situação, por centenas de anos, o Estado brasileiro não só negligenciou seu papel perante negros e indígenas, como atuou de maneira a impedir a inclusão socioeconômica dessas populações, promulgando leis que beneficiavam a elite branca em detrimento daqueles que foram tradicionalmente oprimidos. Dois anos após a independência as práticas religiosas afro-brasileiras eram enquadradas nos artigos 157 e 158 do Código Penal brasileiro, que as rotulavam como espiritismo, magia e outros sortilégios, além de curandeirismo. O fato certamente contribuiu para fomentar o racismo e a intolerância religiosa contra essas populações, o que infelizmente ainda podemos identificar na atualidade, por meio de expressões como “chuta que é macumba” e “magia negra”. Somente em 1942, ou seja, 52 anos depois, uma reforma do código penal acabou com a criminalização legal da umbanda e do candomblé em nosso país. Mesmo assim, algumas leis estaduais continuavam colocando entraves para o funcionamento das religiões afro-brasileiras, como ocorreu na Bahia, em 1972, onde foi promulgada uma lei que exigia alvará emitido pela Delegacia de Jogos e Costumes para a abertura de terreiros. O Código Penal de 1890 ainda criminalizou a prática da capoeira, citada na lei como “capoeiragem”, o que reforçava a criminalização da população negra no Brasil, contribuindo para o antagonismo social contra essa população e para o fomento do racismo.
Diante da triste realidade imposta pela escravidão, parte da população escravizada tinha o hábito de utilizar o fumo de Angola, conhecido também como pito do Pango, como afirma o etnólogo Edison Carneiro:
“E, nos momentos de tristeza, de banzo, de saudade da África, os negros tinham ali à mão a liamba, de cuja inflorescência retiravam a maconha, que pitavam por um cachimbo de barro montado sobre um longo canudo de taquari atravessando uma cabaça de água onde o fumo se esfriava. (Os holandeses diziam que esses cachimbos eram feitos com os cocos das palmeiras). Era o fumo de Angola, a planta que dava sonhos maravilhosos.” (CARNEIRO, 1958, p. 48).
Porém, o uso da maconha foi proibido pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, transformando do dia para a noite milhares de escravizados africanos em criminosos por uma prática corriqueira desde a imigração forçada para as terras brasileiras. É curioso pensar que a capital do Brasil foi o primeiro lugar do mundo a criminalizar a cannabis (BARROS; PERES, 2011), o que deve ser entendido na perspectiva do processo de marginalização e de criação de mecanismos de controle rígidos contra a população africana e afrodescendente em nosso país.
O Código Penal de 1890 ainda dava ao Congresso Nacional o poder de permitir ou não a entrada de africanos e asiáticos em território brasileiro, o que foi promulgado em um contexto de postura racista do Estado do Brasil, que adotou em todo o período imperial um compromisso com o branqueamento da população. Este fato pode ser notado pelo incentivo à imigração europeia para suprir as necessidades relacionadas à força de trabalho, marginalizando cada vez mais os afrodescendentes. Deste modo, os brancos ocupavam, cada vez mais, os postos de trabalho antes ocupados por escravizados, restando poucas oportunidades de trabalhos minimamente dignos para os negros.
Outro obstáculo que praticamente impediu essa população, assim como indígenas, de fazerem parte das classes médias no Brasil foi a Lei de Terras, promulgada em 1850. A referida lei estabeleceu que a única forma de acesso à terra passaria a ser por meio da compra, proibindo definitivamente o regime de sesmaria e dificultando a conquista das terras devolutas mediante a posse. O impacto imediato da medida foi o estabelecimento do monopólio à terra, já que somente os que possuíam uma situação econômica privilegiada poderiam se tornar proprietários. O território que hoje forma o estado de São Paulo, por exemplo, teve 40 por cento de suas terras concedidas a partir de leilões públicos entre 1890 e 1930. Obviamente que indígenas e afro-brasileiros não possuíam recursos suficientes para participarem desses leilões, o que garantiria uma oferta compulsória de força de trabalho para ser explorada pelos proprietários (MARTINS, 2010). Vale lembrar que a política de incentivo à imigração europeia teve como impacto a ocupação de postos de trabalho prioritariamente por brancos, relegando a indígenas e afro-brasileiros os piores trabalhos disponíveis na sociedade e impedindo que essas populações constituíssem as camadas médias da população.
A reforma do Código Penal, ocorrida em 1942, ainda promulgou a chamada “Lei da Vadiagem”, imputando crime a quem fosse abordado vivendo sem renda ou sem assegurar meios suficientes de subsistência. Podemos considerar que o texto da lei tornou ainda mais dramática a existência das populações historicamente oprimidas, pois a partir deste momento, além de não terem acesso às condições mínimas para uma existência digna e sofrerem com o preconceito e com o racismo, essas populações passaram a ser criminalizadas por encontrarem-se marginalizadas na sociedade brasileira. Certamente, o histórico de marginalização dessas populações nos ajuda a compreender alguns dados revelados pelo IBGE em 2018 [1]: em cargos gerenciais, pretos e pardos são apenas 29,9 por cento; nas eleições de 2018 somente 24,4 por cento dos deputados federais eram pretos ou pardos; entre as pessoas abaixo da linha da pobreza, 32,9 por cento são pretas ou pardas. Vale lembrar que pretos e pardos representam 56 por cento da população brasileira. Portanto, a realidade dessas populações não é fruto do acaso, mas sim da histórica ausência de políticas públicas de inclusão e da promulgação de leis que representaram barreiras legais para a ascensão socioeconômica desses oprimidos.
Notamos, portanto, que o Estado brasileiro não apenas negligenciou a inserção de negros e indígenas na sociedade brasileira, mas criou mecanismos para garantir os privilégios da elite branca em detrimento das populações anteriormente subjugadas pela escravidão. Além disso, criminalizou práticas sociais, culturais, artísticas e religiosas desses grupos, fomentando o preconceito, a discriminação e o racismo em diferentes momentos de nossa história política, tanto na monarquia, quanto no período republicano. Processos históricos que poderiam significar mudanças no status quo e aumento de oportunidades para a inserção social, como a independência, a abolição da escravidão ou a proclamação da República, foram apropriados pela elite branca como uma maneira de reafirmar sua hegemonia, corroborando para a marginalização de indígenas e afro-brasileiros.
No final do século XIX e no início do século XX ocorreu o início do processo de expansão dos centros econômicos para o interior do país, o que fez com que os indígenas passassem a ser vistos como um obstáculo para o crescimento econômico que o Brasil poderia vir a ter (RUFINO, 2021, p.2); assim, houve a preconização de um discurso de legitimação da violência e do extermínio contra esses povos. Contudo, esse grande processo de genocídio ocasionou a reação de grupos da sociedade civil, que sensibilizados pela dramática situação dos indígenas no país, passaram a denunciar, tanto na esfera nacional quanto na internacional, a violência para com os nativos praticada pelo Estado brasileiro. Diante da repercussão das críticas oriundas de tais denúncias, o Estado brasileiro criou o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em 1910. O fato marcou o início do reconhecimento da necessidade de defesa de um ideal de que os indígenas deveriam ser protegidos pelo Estado, que tinha o dever de transformá-los em trabalhadores nacionais e proteger suas integridades físicas (RUFINO, 2021, p.2).
Em 1918, a SPILTN foi substituída pela sigla Serviço de Proteção aos Índios (SPI), na qual procurou-se a superação do ideal de busca por mão de obra para ser explorada pelo capital, pelo menos na teoria. Apesar disso, os indígenas ainda eram vistos como grupos transitórios que estariam em um processo de evolução social (RUFINO, 2021, p.4-5). Essa política indigenista iniciada pelo governo começou a apresentar uma série de críticas, principalmente de antropólogos que fundaram o Conselho Nacional de Proteção aos Índios em 1939, que cumpriu a função de questionar as políticas realizadas pelo Estado brasileiro em relação aos indígenas. Com isso, a incompetência dos órgãos federais, aliada à falta de compromisso, à corrupção e à utilização de uma alta violência contra os indígenas colaboraram para a perda de credibilidade do SPI.
Finalmente, em 1967, foi criada, pelo regime militar, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que inicialmente possuía a proposta de assegurar a segurança nacional e promover o desenvolvimento econômico do país. Dentro de tal proposta, os nativos eram vistos como ameaças que dificultavam o crescimento econômico do Brasil. A fundação declarava apoio à ditadura ajudando-a a controlar os indígenas que se posicionavam de maneira contrária aos empreendimentos realizados pelo regime no período. De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ao menos 8350 indígenas foram mortos pelo Estado na Ditadura Militar durante a promoção das obras de infraestrutura defendidas pelo regime. Apenas nos anos 80, com o início do processo de redemocratização, é que a Funai passou a se afastar desse ideal preconizado pela ditadura civil militar.
Adentrando ao marco legal dentro da questão indígena no país, o Código Civil de 1916 tratava os indígenas como relativamente incapazes, ou seja, não podiam realizar atos da vida civil e eram submetidos à tutela do órgão indigenista (RUFINO, 2021, p.5). Assim, os indígenas não tinham nenhuma voz e não podiam mover ações em nome próprio; tudo era decidido por conta do Estado, o que apenas foi revertido com a Constituição de 1988. Antes da Constituição Cidadã, vigorava uma visão assimilacionista dos indígenas, em que a condição de ser um indígena era transitória, situação que acabaria com a incorporação destes povos ao dito mundo modernizado e à cultura ocidental (BARBOSA, 2018, p.126). O assimilacionismo buscava pregar que a evolução da condição indígena à condição moderna era inevitável e desejável, portanto, o ideal seria acabar com as “desigualdades” existentes entre os nativos e a população urbana. Tal preconceito ideológico promovido pelo Estado brasileiro acreditava em uma suposta evolução dos povos indígenas por meio do acesso ao modo de vida desenvolvido, promovendo sua civilização e os inserindo no mercado de trabalho. O fato revela o etnocentrismo envolvido na formulação das políticas públicas brasileiras e o desrespeito às nações indígenas existentes, que deveriam ser descaracterizadas de suas identidades e moldadas a partir da visão do homem branco.
Com a promulgação do Estatuto do Índio em 1973, a visão assimilacionista foi reafirmada com a determinação de que os indígenas deveriam ser isolados das áreas de interesses do governo militar, já que os nativos eram considerados um problema de segurança nacional pelo Estado (RUFINO, 2021, p.6). Em 1978, foi promulgado o Decreto de Emancipação, que determinou a separação dos grupos indígenas a partir do critério do modo de vida adotado por cada nação indígena. Desse modo, aqueles que ainda preservavam as suas tradições seriam tutelados pelo Estado, já os povos que viviam mais integrados à cultura do homem branco receberiam a emancipação e seriam “integrados” à sociedade. Consequentemente, estes últimos logo perderam seus direitos às suas terras originárias.
Somente com a criação da Constituição de 1988 pudemos notar um esforço legal significativo para reverter o processo histórico narrado em nosso texto, por meio da promulgação de leis de proteção às comunidades indígenas, demarcação de terras, reforma agrária, entre outras. Outro passo importante, em termos legais, foi dado em 2012: com a aprovação da Lei de Cotas nas universidades federais, o que foi seguido por leis que tentam garantir a representatividade de indígenas, pretos e pardos em concursos públicos e cargos eletivos. Mesmo assim, as referidas iniciativas muitas vezes são condenadas por grande parte da população que desconhece, ou finge desconhecer a histórica atuação do Estado brasileiro para impedir a ascensão e a inclusão dessas populações em nossa sociedade. Boa parte desta postura pode estar relacionada a atuação da grande mídia, que durante o processo de afirmação de tais medidas vinculou diversas reportagens contrárias as referidas políticas afirmativas. Citaremos o exemplo da revista Veja, que em dezembro de 2012 publicou a reportagem “Cota não resolve problema da educação. Ela cria ilusão”, e em novembro de 2014, a matéria “O grande erro das cotas nas universidades”, ambas com linha editorial claramente contrária a reserva de vagas nas universidades federais.
Atualmente, notamos diversas ameaças a comunidades quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais devido a propostas de alterações em leis que protegem esses grupos. Além disso, percebemos o sucateamento da estrutura de instituições que realizam a fiscalização desses locais, flexibilização de leis ambientais e o resgate de discursos políticos que associam esses povos ao atraso econômico. Em nome de um discurso de suposto crescimento econômico e “desenvolvimento” do país, a agenda de destruição dessas populações avança, revertendo um quadro político histórico de inclusão dos tradicionalmente oprimidos iniciado pela Constituição Cidadã, antes mesmo da conclusão desse processo, representando um refluxo perigoso na atuação do Estado brasileiro como promotor de igualdade e de justiça social. Porém, cada vez mais movimentos sociais e setores da própria mídia realizam reiteradas denúncias da violência empregada por forças policiais, grileiros e garimpeiros contra indígenas, negros e servidores públicos envolvidos na aplicação das medidas de proteção as comunidades ameaçadas pelos interesses do grande capital no Brasil. Essa mobilização parece ter ecoado na grande mídia, que nos últimos anos parece ter tratado as políticas afirmativas de maneira diferente, até porque o sucesso das mesmas parece difícil de ser contestado. Em agosto de 2017, a própria revista Veja publicou a reportagem “Cotas? Melhor tê-las”, reconhecendo a importância da lei, ao realizar um balanço dos resultados alcançados por tal política pública. Recentemente, em 23 de agosto a Rede Globo também tratou do tema no programa Profissão Repórter, intitulado “10 anos da Lei de Cotas”, o que representa uma esperança de que a discussão das políticas afirmativas ocupe um espaço minimamente razoável na grande mídia, justamente no período em que as mesmas encontram-se mais ameaçadas pela atuação do governo brasileiro.
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Notas
[1] Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais.
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BIBLIOGRAFIA:
BARBOSA, Samuel. Usos da história na definição dos direitos territoriais indígenas no Brasil. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; BARBOSA, Samuel (org.). Direitos dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Editora Unesp, 2018, pp. 125-137.
BARROS, A.; PERES, M. Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. Revista Periferia. Volume III, nº 2.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Volume II. Brasília: CNV,2014. 416p. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf>
BRASIL. LEI Nº 3.353, de 13 de maio de 1888.
BRASIL. LEI N° 12.711, de 29 de agosto de 2012.
BRASIL. LEI No 601, de 18 de setembro de 1850.
CARNEIRO, E. O Quilombo de Palmares. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.
DECRETO Nº 847, de 11 de outubro de 1890.
DECRETO-LEI Nº 4.565, de 11 de agosto de 1942
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Editora Contexto, 2010.
RUFINO, Marcos. Protagonismo, direitos e política indigenista no Brasil contemporâneo. In: MACHADO, A; e MACEDO, V. (org.). Povos indígenas entre olhares. São Paulo: Sesc, Unifesp, 2021 (no prelo).
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Autores
Diogo Comitre é mestre e doutorando em História do Programa de História Social da USP; professor do Instituto Federal de São Paulo
Francisco Pinheiro Comitre é graduando em Direito da Universidade Federal de São Paulo