Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Filmes para não deixar de ver (e uma pérola italiana)

(Foto: Bence Szemerey / Pexels)

Depois de termos comentado alguns dos filmes em concurso, é hora de destacar quais os leitores não devem perder, caso sejam exibidos no Brasil ou sejam acessíveis pela Internet. Segue também o comentário sobre um ótimo filme italiano.

O primeiro destaque seria para o filme “Tartaruga de Pedra”, uma coprodução malaio-indonésia, dirigida por Ming Jin Woo, é a história da vingança de uma jovem contra o autor do seu estupro, do qual engravidara. Filmado nas praias de uma ilha da Malásia, tem cenas de extrema crueldade e violência. Em lugar do crime mais comum nas nossas sociedades ocodental e oriental, o feminicídio, a jovem Zahara irá cometer um crime mais raro, o androcídio, contra o pai de sua filha.

Ming Jin Woo não é um desconhecido para os cinéfilos: seus filmes tratando das relações do homem com a natureza já foram exibidos em Berlim, Veneza, Roterdã e Turim, onde “Elefante e o Mar” recebeu o prêmio especial do júri. Para muitos críticos, “Tartaruga de Pedra” merecia um dos prêmios da competição em Locarno.

Merece destaque como denúncia contra a beatice, o filme austríaco “Vou Querer Servir”, da cineasta Ruth Mader, cujo primeiro longa-metragem “Struggle” foi apresentado há alguns anos, em Cannes, na seção Un certain regard.

Qualquer semelhança não seria mera coincidência, com internatos ou escolas católicas de jovens filhas da classe média alta, onde são adestradas para servirem a igreja, se submeterem e preservarem o domínio da fé dentro das famílias. O filme evolui num internato católico, onde uma jovem diretora fanática quer convencer as jovens alunas a serem fiéis seguidoras da religião e mesmo fazerem penitências dolorosas. Os pais devotos seguidores da igreja não percebem os danos, inclusive físicos, causados às suas filhas.

O filme “Sermão para o Peixe”, de Hilal Baydarov (nascido em Baku, no Azerbaijão), tem tudo para ser uma profecia sobre a desolação do fim do mundo. Quando o jovem Davud retorna da guerra ao seu vilarejo não encontra mais nada. Seus habitantes foram corroídos por uma estranha doença e morreram. Só resta sua irmã, que está apodrecendo aos poucos. A região se tornou um campo de exploração do petróleo, os peixes se envenenaram, não há mais o que comer e nem água potável. Vive-se o luto da família e do futuro. Enquanto sua irmã quer ouvir a voz divina, seu irmão tem pesadelos com seus companheiros mortos no Alto Karabag. São as sequelas deixadas pela guerra, enquanto o petróleo penetra e embebe a terra, numa espécie de visão apocalíptica da calamidade e do crepúsculo do mundo. O filme é uma coprodução do Azerbaijão com o México, Suíça e Turquia.

Como uma pausa, em meio a tantos filmes duros, dolorosos e angustiantes, embora reais, “A Piazza Grande mostrou no seu telão a coprodução belgo-suíça “A Última Dança”. Uma reconfortante e otimista história do reencontro de um velho aposentado com a vida por meio da dança. Viúvo aos 75 anos, Germain rejeita o papel de um velho do qual a família quer se ocupar. Sua esposa, bem mais nova, gostava da dança e em homenagem a ela Germain aceita participar do projeto de dança contemporânea do qual ela fazia parte. E Germain aprende a dar vida nova ao seu corpo já envelhecido, participa das repetições, aprende gestos, movimentos e supera sua timidez inicial até o encontro com o público. Dirigido pela cineasta suíça Delphine Lehericey, o projeto era fazer um filme sobre o luto, mas de uma maneira leve e mesmo divertida.

O projeto deu certo – após dez dias de projeção, os votos dos espectadores da Piazza Grande deram o Prêmio do Público para “A Última Dança” e ao ator François Berléand, no papel de Germain.

Outro filme que merecia um prêmio: Il Pataffio, uma comédia medieval italiana

Ali vão eles, numa carroça pequena de dois lugares, sob um sol escaldante, numa região árida e seca, em direção ao palácio recebido do pai e sogro como presente de casamento. Assim começa o filme italiano “Il Pataffio”, na competição internacional do Festival de Cinema de Locarno, com direção e cenário de Francesco Lagi, com seus personagens tontos, sujos e malvados. A recém-casada, um tanto gorda, ocupa todo o espaço, transpira e tem fome, enquanto seu marido, de origem plebeia, ansioso por chegar, desfruta do prazer de se sentir importante com seus soldados e sua pequena e ridícula comitiva.

Cúmulo do azar, ao chegar ao palácio, onde não lhes abrem a porta para entrar, descobrem terem se enganado de endereço. Estamos no interior da Itália, em plena Idade Média, e o pequeno grupo, cansado e com um casamento para ser consumado numa boa cama, pede um pernoite por gentileza, como se costumava fazer entre os nobres.

Entretanto, isso lhes é negado e o conde Berlocchio, o marido, considera a indelicadeza uma afronta, agravada com palavras de baixo calão, gritadas contra eles pela castelã do alto da muralha. Desejoso de assumir rapidamente sua nova categoria de varão nobilizado pelo sogro, o conde se infla como um pavão e decide atacar os detratores com sua pequena dúzia de soldados em final de carreira.

“Atacar o palácio”, ordena, enquanto os soldados procuram encontrar uma escada, que logo se revela curta demais para chegar ao alto do paredão de pedras do palácio. “Que fazemos?” perguntam, diante do obstáculo e sem equipamentos para a escalada. “Subam agarrando-se com as unhas e as mãos” ordena o novo nobre contente de poder exercer seu poder. Não dá certo, um primeiro soldado se esborracha. A situação logo se agrava com uma chuva de pedras, lançada pelos soldados adversários. É preciso fazer meia-volta e continuar com a pequena comitiva extenuada até chegar ao destino.

Mas o palácio é um verdadeiro lixo, com galinhas, cabras e mesmo vaca nos aposentos nobres, sem câmara nupcial para Berlocchio poder deflorar sua virgem e impaciente esposa, cujos sonhos eróticos a colocam em conflito com a obrigação de pureza mesmo nos pensamentos, exigida pela santa Igreja.

Esse é só o início deste bom filme, cuja sequência ridiculariza a igreja, mostra a empáfia e incompetência do conde, enquanto o libidinoso padre da caravana, ao tomar a confissão dos pecados de Bernarda, aproveita também para lhe tomar a virgindade. Por demais ansiosa e ardente com as cavalgadas do padre sobre seu corpo, Bernarda goza e entrega sua alma ao criador.

Um dos invasores do palácio, que ali moravam clandestinamente, de maneira precária, conseguiu reuni-los para expulsar o grupo numa espécie de revolta local. Porém, o Berlocchio consegue convencer o líder a trair seus seguidores, como se costuma fazer na boa política. Mesmo assim, o arranjo falha, pois o líder dos pobres aldeões morre de tanto comer no jantar, a ele oferecido sem talheres e sem guardanapos, com as últimas galinhas caçadas nos arredores.

O filme é baseado no livro “Il Pataffio”, de Luigi Malerba, sobre os tempos medievais de fome, sujeira, gula, anarquia e crendices católicas.

***

Rui Martins esteve no Festival Internacional de Cinema de Locarno.