Chega uma informação à redação: um acidente na rodovia mata quatro pessoas e deixa três feridas. Cinco minutos depois, a equipe já está no local. No dia seguinte, um novo factual. Dessa vez, um incêndio em uma área periférica consome os barracos dos moradores. Novamente, os jornalistas já estão a postos com câmeras e microfones. E assim vão se passando os dias. A multiplicação das notícias de morte e tragédias parece uma coisa simples. E é encarada de maneira tão natural que, ao invés de se indignar, o repórter comemora. Afinal, é nas grandes calamidades que estão as melhores oportunidades. É a chance de aparecer na rede, no Jornal Nacional; de garantir a foto na primeira página. Se o assunto for bom, até mesmo o acompanhamento exclusivo do caso para o veículo.
É nessa hora que aquele velho espírito inquietante do repórter é esquecido. O que predomina é a vontade de se tornar uma celebridade jornalística. Isso não acontece somente com novatos. Até os mais experientes, inclusive que dão palestras e pedem para os estudantes de Jornalismo esquecerem o glamour da profissão, são seduzidos pelo brilho do factual. O importante não é a notícia, mas chegar ao local da tragédia e garantir rapidamente a foto. Ou, no caso da televisão, a passagem do repórter.
Imagine um jornalista, com essa atitude, ao agradecer a Deus pelo dia de trabalho. Ele abaixa a cabeça e diz: ‘Obrigado, senhor, por ter entrado na rede.’ No entanto, ele esquece que, para ficar satisfeito, foi necessário o sofrimento ou morte de alguém. Boaventura Sousa Santos e Eduardo Galeano chamam isso de a insensibilidade diante da dor do outro. Ou seja, não interessa se a casa do vizinho está pegando fogo, desde que não chegue na minha.
Tragédias não precisam ser pré-anunciadas
Sob essa lógica, fazer um jornal em uma cidade onde há homicídios a todo instante, tiroteio a cada meia hora, seqüestros-relâmpago na saída de bancos, não é tão difícil. O jornalismo parece refém do crime. O valor-notícia está ligado à quantidade dos corpos. Para produzir a notícia, basta, ao final, preencher o formulário-padrão, o lead.
Ao vislumbrar um novo ano, novas possibilidades e chances profissionais, seria bom uma reflexão. Ao entrar na faculdade, o sonho de todo o profissional de comunicação é mudar o mundo. Depois de algum tempo, simplesmente compreendê-lo. E, agora? Com uma carreira em consolidação, qual é o objetivo? Não estaria a insensatez a prevalecer sobre o bom senso? E o dever da profissão que está no código de ética, que todos juram seguir: ‘O exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social.’
No livro As Interminências da Morte, José Saramago parte da seguinte pergunta: ‘E se a morte deixasse de matar?’ No mundo imaginário do autor, do dia 1º de janeiro em diante, ninguém mais morre. Ao olhar o jornalismo, a paráfrase é inevitável: ‘E se os factuais deixassem de acontecer?’ Quantos editores não iriam passar a quebrar a cabeça para fechar seus jornais? Claro que não precisa ocorrer o mesmo que na ficção, quando a morte decide anunciar quem vai morrer com sete dias de antecedência para que a pessoa coloque em dia o que lhe resta de vida. As tragédias não precisam ser pré-anunciadas, mas melhor entendidas.
Um novo modelo de bom senso
O jornalismo vive hoje, como os cegos de Saramago, envolto em uma névoa branca que ofusca a vista. O faro da notícia virou ânsia por sangue. O desejo de publicar tornou-se vontade de vencer a concorrência. Um risco à correta e precisa divulgação dos fatos.
Saramago, no livro Ensaio sobre a Cegueira, questiona sobre o nível de humanidade dos homens. Neste texto, o pensamento é sobre o nível de humanidade dos jornalistas. Na ficção, a necessidade de sobrevivência fez as mulheres entregarem seus corpos em troca de alimento. Na redação, a vaidade é o que elimina o bom senso. Nas duas situações, os limites da existência são tênues. No primeiro, uma forma de garantir a vida. No outro, a vida como garantia, para realização unicamente profissional.
É fundamental lutar contra a visão unilateral do fato. Ir além do corpo no chão é dever de todo repórter. A mudança de pensamento na profissão é urgente para que um novo modelo de bom senso – mais mesquinho – não passe a preponderar nos manuais da atividade. Como ressalta Marilena Chauí, quem define o que é bom senso são as próprias pessoas, com base na moral da sociedade.
Pobres como pobres
O alerta de uma nova forma de pensar vem dos próprios veículos na produção de reportagens classificadas como frias. Observe, por exemplo, as matérias de abrangência nacional: sobre o Vale do Jequitinhonha – quantas não foram sobre exploração sexual infantil? Sobre o Rio São Francisco – quantas não mostraram apenas arte e cultura? Sobre o nordeste – quantas não enfocaram as peculiaridades da região e a pobreza do povo?
Se a região é pobre, o jornalista não vai inventar outra realidade. Porém, pensar pautas apenas sob uma ótica indica falta de criatividade. O chamado kit seca (aquela imagem do chão rachado, caveira de boi e a família na porta de uma casa de pau a pique) precisa ser superado. O jornalista tenta mostrar a verdade. Ao contrário do autor de ficção, ele não manipula os personagens à vontade, mas busca harmonizar histórias, dados e números. No mínimo de escrúpulos que tiver, o jornalista não inventa fatos, como fez Janet Cooke, do Washington Post, em 1981, ao criar o caso de um garoto viciado em crack e ser obrigada a devolver o Pulitzer que havia ganhado.
Se há fome, se há violência, é para ser publicado. Mas a forma pela qual isso tem sido feito ultimamente é apenas uma repetição. Mais do mesmo. Sem ineditismo ou sem chamar atenção para a real gravidade de cada situação.
Muitas vezes, o que move os jornalistas nas pautas frias sem criatividade são os prêmios. Há tipos de reportagens que são clichês nas competições de melhores trabalhos jornalísticos. Sexo, drogas, fome e pobreza nunca faltam. E nunca faltarão. Pois é da carne do morto que se alimentam os abutres.
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Jornalista, especialista em jornalismo político, professor e escritor, Montes Claros, MG