‘Na sociedade da informação, a política internacional não é somente feita por meio da utilização da mídia, mas também percebida por intermédio dela. Ressalta-se que essa percepção oferecida pelos meios de comunicação não é uma pintura fiel de como o mundo é, mas, uma construção estruturada em todos os tipos de subjetividade inerentes ao homem. Por isso, considerar a mídia como um ator relevante no cenário internacional implica a responsabilização das suas atitudes nesse cenário. Com efeito, existe a necessidade de discursos mais plurais serem construídos. E quando o assunto é guerra, essa necessidade é ainda mais urgente, devido ao fato de que, quando não questionadas, a utilização de manipulações e propagandas não forma somente um consenso ou uma convenção entre os membros da sociedade internacional, mas injustamente legitimam a morte de milhões de seres humanos. O papel da mídia como ator deve igualmente ser responsabilizado por participar, junto com outros fatores, dessa configuração.’ (*)
Na cobertura do conflito entre Israel e Palestina na Faixa de Gaza, a Agência Brasil realizou uma tentativa de informar seus leitores sobre o assunto sem contar com correspondentes na região, baseando suas informações em agências internacionais com as quais mantém parcerias: Telam, da Argentina, BBC Brasil, da Inglaterra, e Agência Lusa, de Portugal, com fontes oficiais do governo brasileiro e das embaixadas dos países em conflito, e com moradores da região.
No décimo dia da cobertura e 11º da guerra ( a ABr entrou na cobertura com 24 horas de atraso) a Ouvidoria recebeu uma mensagem do leitor Mario Augusto Jakobskind comentando o que ele chamou de ‘um equívoco jornalístico e político inadmissível numa empresa pública’, referindo-se ao fato de a Agência Brasil ter publicado, em 28 de janeiro, a matéria Governo brasileiro pede a Israel fim de bombardeios à Faixa de Gaza , em que afirmava que ‘o bombardeio (de Israel na Faixa de Gaza) foi uma resposta aos ataques de militantes do grupo palestino Hamas, que vinham lançando foguetes contra o Sul de Israel’. Mario Augusto sugeriu em sua mensagem, entre outras coisas ‘que a Agência Brasil, para se diferenciar da mídia hegemônica, deveria se aprofundar na questão. Explicar, por exemplo, o motivo pelo qual o Hamas lança foguetes caseiros contra o exército proporcionalmente mais bem equipado do mundo.’
O leitor assinalou ainda que ‘estranhamente, e contraditoriamente em relação ao posicionamento do governo brasileiro, a nota da Agência Brasil não faz referência a um bloqueio suicida que já tem 18 meses de duração, que inclui o corte no fornecimento de eletricidade, água potável, medicamentos a Gaza. Nem faz referência às razões do porquê milhões de palestinos estarem confinados em guetos como o da Faixa de Gaza, quando antes da criação do Estado de Israel viviam por ali, por todo o território.’
Concluindo o leitor lembrou que ‘o mínimo que se exige de um jornalismo que não compactua com o pensamento único é colocar fatos, contextualizá-los, para tentar que os leitores e telespectadores tenham um melhor entendimento sobre os lamentáveis acontecimentos naquela parte do planeta.’
Em resposta ao leitor, a ABr informou que ‘Como não temos correspondentes no exterior, nossas matérias, relativas a questões internacionais são dadas com base nas agências de notícias com as quais temos convênios – Telam, Lusa e BBC Brasil – e nas manifestações do governo brasileiro. Nota do Itamaraty, do dia 27/12, diz que ‘o governo brasileiro acompanhou com apreensão a intensificação do lançamento de foguetes por milicianos do Hamas contra o Sul de Israel’…. Em outro trecho, a nota afirma que ‘o Brasil deplora a reação desproporcional israelense, bem como o lançamento de foguetes contra o Sul de Israel’. Como se vê, a própria nota do Itamaraty fala em lançamento de foguetes contra o Sul de Israel.’
Só que nem as agências citadas nem o governo brasileiro fizeram afirmativamente a ligação causal entre o bombardeio de Israel e os ataques palestinos com foguetes. Em todas as fontes citadas sempre foi ressaltado que esse motivo era uma alegação de Israel para justificar a deflagração da guerra.
Ao afirmar positivamente que essa era a causa da guerra, a ABr comprou a alegação de Israel como verdade absoluta e isso causou a mensagem indignada do leitor. Agindo dessa maneira ,a ABr omitiu a informação de que o conflito tinha um contexto muito mais amplo, uma dimensão histórica que remonta à criação do Estado de Israel após o fim da Segunda Guerra.
Ao decidir fazer a cobertura de assuntos internacionais, sem contar com correspondentes suficientes para tal, a Agência Brasil fez uma opção editorial e política bastante arriscada. Está se tornando mais um ator internacional, responsável pela construção da percepção de seus leitores e isso ‘implica a responsabilização das suas atitudes nesse cenário’, conforme apurou Julia Faria de Camargo em sua tese de mestrado, no trecho citado no início desta coluna.
Se já em 1917, com os correspondentes de guerra presentes no cenário das batalhas, o senador norte-americano Hiran Johnson disse que ‘em uma guerra a primeira vítima é a verdade’, referindo-se à maneira como os jornais de seu país cobriram a Primeira Guerra, imaginem como a verdade pode ter sido tratada no atual conflito, no qual os correspondentes foram impedidos por Israel de ter acesso à região. Esse pode ter sido um dos fatores determinantes da qualidade da cobertura jornalística do atual conflito, fator que atingiu indiscriminadamente a todos os atores noticiosos.
É interessante explicitar que, embora muito importante, não é apenas a presença no front que garante equilíbrio na cobertura. Muitas agências optam por um dos lados, mesmo quanto têm acesso às informações. Na cobertura da invasão do Iraque, em 2003, por exemplo, muitos jornalistas norte-americanos integraram oficialmente pelotões do exército dos EUA, o que causou indignação.
Na cobertura em geral das agências de notícias, as fontes oficiais foram as que mais se destacaram divulgando versões e construindo uma realidade que pode estar muito aquém dos fatos ocorridos em Gaza – ‘Ressalta-se que essa percepção oferecida pelos meios de comunicação não é uma pintura fiel de como o mundo é, mas, uma construção estruturada em todos os tipos de subjetividade inerentes ao homem’ (*). Devido ao cerco e ao isolamento da região promovidos pelo governo de Israel, talvez jamais o público tenha acesso ao que realmente aconteceu, ficando registrado apenas o que as agências internacionais conseguiram apurar nos escritórios das autoridades beligerantes.
A partir desse quadro geral de dificuldades, podemos dizer que a cobertura da Agência Brasil cresceu e se diferenciou no decorrer dos dias em comparação às demais, conseguindo retratar os esforços do governo brasileiro em mediar e propor soluções para o conflito. Mas uma cobertura feita a milhares de quilômetros de distância não conseguiu refletir a realidade da guerra nem construir um olhar brasileiro sobre a questão – ‘Com efeito, existe a necessidade de discursos mais plurais serem construídos’ [‘Ecos do fragor: A invasão do Iraque em 2003 – A mídia internacional e a imprensa brasileira’, tese de mestrado defendida por Julia Faria Camargo no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília]. Por enquanto, ficamos, em parte, com a versão de repórteres e editores ingleses, argentinos e portugueses. Ai reside um problema e um desafio, decorrentes da decisão editorial de incluir assuntos internacionais na pauta da ABr, que caberá à direção da EBC resolver.
Independentemente dos problemas de acesso à realidade dos fatos, na cobertura da guerra, a ABr ficou devendo a contextualização ‘para tentar que os leitores e telespectadores tenham um melhor entendimento sobre os lamentáveis acontecimentos naquela parte do planeta’, reclamada pelo leitor.
Até a próxima semana.