Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Branco e preto na imprensa

Era apenas uma nota na coluna de Ricardo Boechat (Jornal do Brasil, 20/5/2005), sem maiores repercussões ou suítes no noticiário daquele ou de quaisquer outros jornais. No entanto, tratava-se de algo importante como fato, que não chegou a se tornar acontecimento jornalístico.

A nota revelava que a Usitec, empresa do grupo Usiminas, estava recusando trabalhadores negros numa de suas grandes obras nas Alterosas e contratando homens de pele clara, transportados aos magotes em caminhões vindos de Santa Catarina e Paraná.

O episódio encerra inicialmente uma boa lição para os observadores do jornalismo: a da diferença entre fato social e acontecimento. Realmente, desde o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), fatos são os objetos para conceitos, cuja realidade objetiva pode ser provada, seja mediante a razão, seja por experiência. São os fatos que tornam as proposições verdadeiras ou falsas. Acontecimento, por outro lado, é um modo de tratar a realidade do fato – portanto, é uma construção atravessada pelas representações, às vezes contraditórias, que se fazem da vida social.

Na prática, os dois termos são sinônimos. Para fins analíticos, porém, é viável uma distinção, como a estabelecida pelo francês Maurice Mouillaud, analista do texto jornalístico: ‘A hipótese que sustentamos é a de que o acontecimento é a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema da informação, o conceito do fato’.

O problema agora – e a segunda lição se extrair – é averiguar por que o fato implícito na nota da coluna de Boechat não se tornou acontecimento jornalístico, quando deveria realmente tornar-se. Afinal, existem na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, tanto em O Globo quanto no Estado de S.Paulo, articulistas especializados em argumentar contra a existência de quaisquer problemas raciais no país. Fazem eco, é preciso reconhecer, a um tipo de pensamento, corrente até mesmo na mais ‘avançada’ esquerda política, segundo o qual inexistiram mesmo negros no Brasil. Esta seria uma terra de mestiços – a ‘harmônica’ mestiçagem nacional assim interpretada por analistas dos anos 1930 –, logo, não faria sentido em falar-se em ‘negros’ ou, pior ainda, em benefícios sociais específicos para os descendentes de africanos que já entraram na modernidade republicana como cidadãos de segunda classe e com as todas as desvantagens individuais e sociais daí resultantes.

Presença reduzida

Num livro de algum tempo atrás (Claros e Escuros, Editora Vozes), falávamos de um ‘racismo midiático’, suscitado por fatores da seguinte ordem:

1. A negação – Do mesmo modo como as elites de hoje rejeitam o racismo doutrinário ou evitam a pecha de ‘sujeitos da discriminação’, a mídia tende a negar a existência do racismo, a não ser quanto este aparece como objeto noticioso, devido à violação flagrante desse ou daquele dispositivo anti-racista ou a episódicos conflitos raciais. De uma maneira geral, porém, as elites logotécnicas, ao contrário das elites identitárias do passado, tendem a considerar ‘anacrônica’ a questão racial, deixando de perceber as suas formas mutantes e assim contribuindo para a reprodução do fenômeno em bases mais extensas.

2. O recalcamento – Tanto no jornalismo como na indústria cultural em seus diferentes modos de produção, costuma-se recalcar aspectos identitários positivos das manifestações simbólicas de origem negra. Assim é que, quando se fala do vitalismo cultural da música popular brasileira, não se acentua suficientemente a sua proveniência nem o papel tático que tem desempenhado nas relações interraciais. O mesmo acontece quando se trata de vultos importantes da História, das artes, da literatura. É freqüente encontrarem-se profissionais competentes da mídia completamente ignorantes no que diz respeito à História do negro no Brasil ou nas Américas.

Há outros fatores, como a estigmatização e a indiferença profissional, mas não é o caso de nos determos longamente sobre eles aqui. Basta frisar ainda mais, a propósito da indiferença, que a mídia contemporânea pauta-se pelos ditames do comércio e da publicidade, pouco interessados em questões como a discriminação do negro ou de minorias. Os profissionais de imprensa – membros dessa intelectualidade coletiva das classes dirigentes, que é a mídia – acabam dessensibilizando-se com problemas dessa ordem, além do fato de que é reduzida a presença de negros nas fileiras profissionais da imprensa brasileira.

Mal-estar civilizatório

Não é difícil, assim, entender por que o indício de um fato social de grandes conseqüências – a efetiva discriminação de cidadãos de pele escura no mundo do trabalho –, tipificado no episódio da Usitec, deixou de se tornar acontecimento em jornal. Há os fatores arrolados acima, mas há sobretudo uma espécie de mal-estar presente na consciência da classe média intelectualizada, que leva à recusa de admissão de problemas raciais no país.

Se o governo aborda a questão (como agora tenta fazer o Ministério da Educação, com o objetivo de planejar ações afirmativas) é logo acusado de ‘racialismo’ pelos prestimosos porta-vozes midiáticos das elites tradicionais. Tenta-se negar a evidência de uma discriminação sócio-histórica, que resulta no fato da pele clara como vantagem patrimonial.

Evidentemente, isso não justifica a admissão de um conflito racial à maneira norte-americana ou sul-africana. As particulares mediações da mestiçagem e do transculturalismo brasileiros têm de ser levadas em conta e ajudar a contornar os inúteis radicalismos estilo black panther.

Só não há como deixar de reconhecer o que se apresenta aos olhos de quem estiver disposto a ver: a realidade de um problema, o incômodo de um mal-estar civilizatório. A imprensa que, no limite, se gaba de ter os ‘mil olhos do doutor Mabuse’, não pode se comportar como avestruz.

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Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro