As cenas de corrupção explícita do mensalão do partido Democratas de Brasília, ameaçando espraiar-se por outros partidos e outros estados, é um dos mais traumáticos acontecimentos da vida republicana brasileira. Está certo que o autor das gravações tem o perfil de um canalha, seu objetivo é espúrio, não está afastada a hipótese de manipulação nas gravações e várias outras circunstâncias desabonadoras. Mas uma conseqüência concreta e drástica devia ter acontecido. E, findo 2009, não aconteceu.
Se o país tivesse realmente a saúde moral e ética que exibe nas traduções quantitativas da sua condição de afluência material, cabeças teriam rolado, haveria choro convulsivo e o ranger de dentes seria ouvido em todos os quadrantes do território nacional. A repercussão, porém, guardou uma distância patológica do fato escandaloso. Até agora, a montanha pariu um rato (embora que rato!).
O presidente Lula foi quem deu a senha para que o impacto fosse amortecido e dissipado ao dizer que uma imagem não é suficiente para formar juízos. Uma imagem qualquer, certamente não. Mas aquelas cenas sórdidas de homens públicos recebendo pacotes de dinheiro e os ocultando em suas roupas testemunham tal degradação de hábitos e costumes que se os personagens nada fizeram, alguma autoridade tinha que de imediato suprir suas sem-vergonhices e infâmias através de um ato corretivo qualquer. Era daquele tipo de imagem com mais força do que um milhão de palavras.
A condescendência do homem público nº 1, que tem o maior índice de aprovação de todos os tempos já alcançado por um presidente da República, perpetuou a vilania e caiou de róseo o negrume que cobre a vida pública brasileira, em contraste com a riqueza material do país.
Razão do silêncio
O Jornal Pessoal se consolidou quando, depois de provocar um grande impacto sobre a opinião pública com a revelação da trama para assassinar o ex-deputado estadual Paulo Fonteles de Lima, na primeira quinzena de setembro de 1987, dedicou a segunda edição a desnudar um rombo praticado no caixa do Banco da Amazônia, O desfalque foi praticado por uma quadrilha que tinha à sua frente nada menos que o diretor e presidente interino da instituição. Ao compulsar dezenas de operações creditícias irregulares ou fraudulentas autorizadas pelo diretor para pessoas subordinadas ao seu filho, e somar os valores desses desvios, constatei que o alcance era equivalente a 30 milhões de dólares, valor da época de dólar de alta cotação.
Oito meses antes o secretário de finanças da Pensilvânia, Budd Dwyer, chocara o mundo ao se suicidar diante das câmeras de televisão. Ele convocara a imprensa para apresentar sua resposta às denúncias de que recebera 300 mil dólares de propina para favorecer uma empresa com interesses no governo daquele estado americano. Quando todos os repórteres estavam postados e as câmeras ligadas, Dwyer meteu a mão num saco de supermercado, tirou um revólver, colocou o cano dentro da sua boca e disparou, depois de dizer que essa era a resposta aos que dava aos seus acusadores. Como o Diário do Pará não estava na cobertura, fomos poupados de ver a fotografia da cabeça estourada do secretário e seus miolos espalhados pelo chão e a parede.
Nunca pude apurar adequadamente se Dwyer tinha culpa ou não no desvio de dinheiro do tesouro da Pensilvânia, mas o saque no caixa do Banco da Amazônia era evidente, provado. No entanto, nenhum órgão da imprensa local tratava do problema. Era tema proibido, embora o rombo fosse 100 vezes maior do que a propina que levara o secretário da Pensilvânia a se suicidar. A razão do silêncio obsequioso? O chefe da quadrilha, o advogado Augusto Barreira Pereira, era também diretor do departamento jurídico do grupo Liberal (e contava com o apoio de Jader Barbalho, dono do outro grupo de comunicação), e um dos seus comparsas era irmão do superintendente de A Província do Pará, o maravilhoso arquiteto e compositor de música popular Billy Blanco. Tutti quanti buonna gente, acima de qualquer suspeita.
Esqueletos no armário
O desfalque era de tal magnitude que, apesar da conivência da imprensa local, levou à instauração do primeiro processo pela então recém-editada Lei do Colarinho Branco, que hoje ostenta uma enorme galeria de freqüentadores, raríssimos deles punidos. As diversas formas do jeitinho brasileiro acabam livrando a cara dos acusados e a impunidade subverte o padrão de decência que o país devia seguir ao se deparar com escândalos de qualquer natureza, sobretudo em versão tão chocante como essa do mensalão do DEM brasiliense.
Diz o ditado que em casa de enforcado não se fala de corda e que quem tem rabo de palha evita o fogo. Talvez os ditados ajudem a entender por que, ao invés de dar passagem à indignação do povo brasileiro, o tão popular presidente da República tenha fornecido a senha para que o lixo fosse colocado debaixo do tapete e os esqueletos guardados no armário. Ainda que cabeças venham a rolar e sangue a escorrer, o tempo entre o choque e a sua reverberação dá a medida da moral pública no Brasil. Um país retardado moralmente.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)