Colômbia, Honduras mudaram da direita para a esquerda em 2022, e talvez em breve o Brasil. Estes dois ou talvez três países foram precedidos há alguns meses pela Argentina, Bolívia, Chile, México e Peru. Alguns acrescentariam o Panamá e a República Dominicana a esta lista, outros acrescentarão aqueles países que há muito se ancoram, de forma quase inabalável, na esquerda, Cuba, Nicarágua e Venezuela. Este “bloco”, a respeito do qual ainda seria preciso justificar a relevância de sua existência, terá a possibilidade ou mesmo a intenção de se constituir como tal? Portanto, se unirá para transformar o chumbo diplomático conservador herdado, obviamente nos países desse bloco onde há eleições transparentes, em ouro libertador? Essas vitórias anunciam iniciativas que podem romper com a ordem interamericana e internacional dominante?
Na véspera dessas mudanças para governos progressistas que vemos hoje em dia nesse cenário, as autoridades conservadoras até então no poder praticavam uma diplomacia de aquiescência em relação à ordem internacional. Eles abandonaram rapidamente, logo após sua posse, as iniciativas internacionais assertivas que haviam sido tomadas pelas equipes nacionalistas precedentes, e com ideias avançadas. Algumas organizações intergovernamentais latino-americanas, como a CELAC (Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe) foram enfraquecidas com a retirada do Brasil em 2019. Outras foram praticamente eliminadas, como a ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas), criada pela Venezuela de Hugo Chávez, e a UNASUL (União das Nações Sul-Americanas), concebida pelo Brasil, sob o governo Lula, e pela Venezuela “bolivariana”.
Estas foram substituídas por outras instituições, dessa vez com base nos valores do livre comércio, como a Pacific Alliance e a PROSUR, criadas em 2011 e 2019, respectivamente. Em 2017, o Grupo Lima foi fundado para derrubar o governo venezuelano de Nicolas Maduro. Ao mesmo tempo, os laços com os Estados Unidos, a Europa e seus parceiros asiáticos foram fortalecidos. Vários desses países aderiram então à OCDE. O México confirmou em 2018 seu compromisso com o grande mercado norte-americano, agora denominado T-MEC. Na diplomacia, eles seguiram a cartilha, tal como os europeus, e conforme os desejos dos Estados Unidos, em relação à Venezuela. O governo de Nicolas Maduro, embora exercendo o poder de direito em Caracas, foi expulso da OEA. Juan Guaidó, o então autoproclamado presidente, representante de uma parte da oposição, foi nomeado para substituir Maduro nesta instituição. A Colômbia, membro da OCDE, da Aliança do Pacífico e do Grupo Lima, retaguarda ofensiva em relação ao contrapoder virtual venezuelano, levou seu alinhamento “pró-ocidental” ainda mais longe ao firmar uma parceria com a Aliança Atlântica em 2011.
Depois dessas novas alternâncias de poder e cenário, qual será o futuro diplomático da América Latina? As mudanças ideológicas no topo do Estado são necessariamente acompanhadas por uma reorientação diplomática? Nos anos anteriores entre 2000/2016, os governos de esquerda adotaram políticas que afrouxaram a dependência dos Estados Unidos e seus aliados. Ontem, os governos de direita no poder tinham, ao contrário, suspendido esta política a fim de se aproximarem do “Ocidente”. Amanhã, portanto, podemos esperar uma espécie de retorno à estaca zero, à diplomacia independente e afirmativa dos anos 2000/2016.
Esta hipótese é consistente com alguns dos sinais provenientes da Argentina de Alberto Fernandez, da Colômbia de Gustavo Petro ou do México de AMLO (Andrés Manuel Lopez Obrador). A Argentina se recusou a impor sanções à Rússia após a invasão da Ucrânia. A Colômbia restabeleceu as relações com a Venezuela. O México se recusou a participar da Cúpula das Américas, presidida por Joe Biden em Los Angeles, já que Cuba não foi convidada. Muitas outras atitudes ou posturas dão corpo a esta hipótese que, no entanto, não é totalmente convincente.
A defesa dos interesses latino-americanos envolve necessariamente mudanças diplomáticas de 180º a cada mudança de governo? Esta ruptura, apresentada como inevitável, enfraquece o escopo das políticas externas. Ela impõe renunciar a algo que já existe, que está bem estabelecido, em favor de algo mais a ser reinventado, no dia seguinte a cada reviravolta eleitoral. As organizações intergovernamentais, deslegitimadas, a cada pleito, não facilitam as convergências coletivas. No entanto, além das divergências sobre questões sociais, jurídicas e sociais, há possíveis denominadores comuns na política externa. A China, por exemplo, é reconhecida por todos como um elemento de equilíbrio econômico, comercial e tecnológico. O país permaneceu como o principal ou segundo parceiro para quase todos esses países, apesar da pressão contrária e constante de Washington. No que diz respeito à ordem mundial, nenhum governo latino-americano aplicou sanções contra a Rússia, país que invadiu seu vizinho ucraniano. Recentemente, quatro presidentes latino-americanos, três “progressistas” e um “conservador”, convocaram os partidos políticos peruanos, que eram os atores principais da instabilidade crônica que estava paralisando qualquer ação governamental, à racionalidade institucional.
Esta avaliação foi feita, desde que tomou posse, pelo novo presidente “esquerdista” do Chile, Gabriel Boric Font, e sua ministra das Relações Exteriores. Eles argumentaram que é preciso priorizar, na América Latina, o que nos une se quisermos defender melhor nosso direito de ter voz no cenário internacional. Assim, o Chile e o México decidiram preservar a Aliança do Pacífico apesar de suas origens “neoliberais”. Chile, Colômbia e Equador participaram da cúpula da CAN (Comunidade Andina das Nações) em Lima para revitalizá-la. A Colômbia propôs uma conferência internacional para criar um fundo para preservar a Amazônia e uma conferência latino-americana para avaliar as consequências do fracasso das políticas contra o tráfico de drogas. O México, salientou o presidente AMLO, não pode dar-se ao luxo de uma crise com os EUA. É e continuará sendo um membro leal do T-MEC. Bendito seja, “estar perto de Deus, e não tão longe dos EUA” [2]. Por outro lado, se o México favorece sua integração norte-americana na economia, ele mantém seu livre arbítrio na diplomacia. Defenderá firmemente a soberania nacional, a não-interferência e o multilateralismo. O presidente AMLO tem sido o anfitrião das partes rivais venezuelanas, a fim de facilitar o estabelecimento de um compromisso comum. Ele enviou um avião militar para escoltar o presidente boliviano, Evo Morales, cuja vida tinha sido ameaçada. Ele tem fortalecido sua cooperação com os governos centro-americanos, independentemente da ideologia, para ajudá-los a resolver seus problemas de migração.
As limitações de cada país da América Latina também jogam nessa mesma direção. A Argentina, quaisquer que sejam as responsabilidades de cada parte, é refém de sua dívida externa. Alberto Fernandez, um justicialista de centro-esquerda que atualmente ocupa a “Casa Rosada”, bateu na porta de Vladimir Putin e de Xi Jinping. Ele acabou, após uma turnê europeia subsequente, batendo também na porta do FMI. A Colômbia, tal como reconheceu sem rodeio seu presidente Gustavo Petro, não tem o que dizer em relação ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Está sofrendo as consequências econômicas e financeiras do conflito, sem ter qualquer possibilidade de contribuir para sua resolução. Nosso problema, acrescentou ele, e este ponto de vista é também o dos argentinos, bolivianos e equatorianos, é preservar nossas bases alimentares. Como já vimos, o México é refém de sua geografia, que lhe impôs ao longo dos séculos e ainda lhe impõe a inserção de sua economia em um espaço regional voltado para o norte.
Os próximos meses talvez forneçam algumas novas respostas para a perpetuação da quadratura do círculo diplomático latino-americano, lamentada em seu tempo por Simon Bolívar, ao final da vida, ao dizer que tinha “usado o arado no mar e semeado ao vento”.
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Notas
[1] Texto publicado originalmente em francês, em 07 de setembro de 2022, na seção ‘Analyses’, no site do IRIS – Institut de Relations Internacionales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Amérique latine: alternances électorales et changements diplomatiques”. Disponível aqui. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.
[2] Andrés Manuel Lopez Obrador, A la mitad del camino, México, Planeta, 2021, p. 116.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.