A maioria absoluta da imprensa informa sobre a crescente polarização política ideológica no Brasil e no mundo como se ela fosse uma mera observadora do fenômeno. Uma análise mais detalhada revela, no entanto, que jornais, revistas, telejornais e influenciadores digitais são participantes no processo polarizador ao condicionar a opinião pública a partir de agenda de políticos e governantes.
Isto ocorre porque o jornalismo tem um papel chave no desenvolvimento do chamado hiato de percepção (perception gap, no jargão inglês), ou seja, na diferença entre o que uma pessoa acredita ser a posição de outra pessoa, e o que esta última realmente pensa e age. As percepções surgem, majoritariamente, a partir de informações publicadas na imprensa e quanto maior o hiato de percepção, mais distorcida é a forma como uma pessoa vê quem não compartilha da mesma visão de mundo.
Isto é extremamente preocupante porque mostra como a imprensa é participante e parcialmente responsável pelo processo de polarização política em curso no Brasil, nos Estados Unidos e em diversos outros países do mundo. Uma pesquisa [1] realizada conjuntamente por dois institutos britânicos, o More in Common e o YouGov, constatou uma tendência três vezes maior ao desenvolvimento de opiniões distorcidas entre leitores diários de um mesmo jornal do que entre os que só ocasionalmente acessam o noticiário ou consultam mais de uma publicação.
As bolhas extremistas
O aumento das percepções radicalizadas é o resultado de dois processos simultâneos e que se tornaram mais intensos ultimamente: a tendência dos leitores a formar bolhas informativas e o fato da imprensa continuar ignorando a complexidade crescente dos fatos noticiados. As bolhas se formam quando as pessoas consomem apenas jornais, telejornais e sites de redes sociais que têm a mesma visão de mundo. Na maioria dos casos é uma reação natural às incertezas geradas pela cacofonia informativa da internet.
No caso das bolhas formadas por extremistas de direita, o motor principal para a formação de bunkers políticos é o medo das mudanças que a inovação tecnológica vem provocando no dia a dia das pessoas. Daí o apelo ao passado como forma de tranquilizar a si próprios e dar aos seus seguidores a expectativa de que nada de fundamental vai mudar. O passado virou um refúgio para milhares de pessoas temerosas e inseguras diante do fracasso da social-democracia e dos movimentos socialistas em dar respostas aos dilemas econômicos e políticos da sociedade contemporânea.
A lógica da polarização do “eu” e “eles” ou do bem contra o mal já se tornou irreversível, apesar das derrotas sofridas pelos extremistas de direita ligados ao ex-presidente Donald Trump nos Estados Unidos, e da possível frustração dos seguidores do presidente Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de outubro. O caso norte-americano indica claramente que o hiato de percepções continuará aumentando, como mostra outro resultado da pesquisa realizada por More in Common e YouGov.
Entrevistas com 2.100 norte-americanos permitiram identificar que hoje 30% dos eleitores republicanos e democratas mostraram posições extremistas em relação a quem não compartilha dos mesmos pontos de vista políticos. E o pior, indicaram que o antagonismo pode chegar a contaminar 55% dos cidadãos norte-americanos aptos a votar nas eleições presidenciais de 2024, quando Donald Trump deve tentar voltar ao poder.
Aqui no Brasil, restam poucas dúvidas de que o bolsonarismo radical não vai desaparecer, mesmo se for derrotado nas urnas, indicando que a polarização provavelmente continuará. É muito possível que surjam bolsões políticos de extrema direita especialmente no sul, sudeste e centro oeste do país, que devem complicar o debate político e colocar a imprensa diante de um enorme dilema.
Responsabilidade escancarada
Há duas alternativas para este dilema da imprensa: continuar com a estratégia editorial de lamentar a polarização e funcionar apenas com observador do bate-boca político/ideológico, ou assumir que a avalanche informativa na internet aumentou enormemente a complexidade do noticiário e escancarou a responsabilidade que o jornalismo tem na redução do hiato de percepções.
A imprensa tende a tratar temas que afetam as pessoas comuns como itens da agenda dos políticos. Um caso típico desta tendência é o debate sobre a legalização do aborto. A agenda dos políticos está estruturalmente montada em torno da transformação do debate político numa disputa entre duas facções, os contra e os a favor, onde o mais importante é saber quem ganha e quem perde. Esta simplificação do debate eleitoral acaba sendo repassada ao público consumidor de notícias que incorpora no seu dia a dia a polarização criada pela agenda político/partidária.
Para a imprensa deixar de ser cúmplice na polarização ideológica, ela precisa desatrelar sua agenda noticiosa das preocupações e estratégias de políticos e candidatos para focar no que pensam e desejam as pessoas comuns [2].
Tomando o exemplo do aborto, uma cobertura preocupada em reduzir o hiato de percepções teria que se deter menos na batalha parlamentar e jurídica em torno da aprovação ou não de um projeto legalizando a interrupção da gravidez para focar mais no que as pessoas sentem sobre o tema e como ele afeta suas relações com amigos, colegas e familiares. O estímulo à diversificação de opiniões e vivências de pessoas comuns tende a reduzir o impacto da polarização, conforme mostra um artigo escrito pela jornalista norte-americana Celeste Katz Marston.
Além de abandonar a polarizadora agenda dos políticos e partidos, a imprensa precisa deixar de lado a regra de ouvir os dois lados, porque este procedimento se tornou obsoleto diante da complexidade crescente dos fatos e eventos noticiados. Jornais, revistas, telejornais e influenciadores digitais para não serem arrastados ao beco sem saída da polarização e radicalização, terão que levar seus respectivos públicos a refletirem sobre como o mundo que nos cerca ficou complexo demais para ser reduzido a uma interminável batalha entre “nós” e “eles”. Não é uma mudança fácil e nem rápida, mas é inadiável porque os riscos criados pelas bolhas informativas ameaçam a sobrevivência da democracia.
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[1] Pesquisa citada no artigo Political Coverage is Changing to Get Beyond ‘Us Versus Them’ (14/09/2022)
[2] Mais detalhes sobre a questão da agenda cidadã no texto “Cobertura eleitoral ignora agenda do cidadão comum”
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.