“O único sentimento que alguém pode ter acerca
de um evento que ele não vivenciou é o sentimento
provocado por sua imagem mental daquele sentimento”.
Walter Lippman
A evidência de que a campanha eleitoral deste ano focou e privilegiou a Presidência da República revela o quanto as disputas regionais, estaduais, são tratadas como secundárias. De modo geral, os jornais e redações destacaram os insultos trocados e as informações resultantes de fake news ou de alguma fonte procedente, mas frágil no trato do cenário político. A performance, aliás, é exaltada, mesmo que seja ancorada em elementos bizarros, insustentáveis na mínima racionalidade. Aliás, nos últimos quatro anos, os insultos e afirmações fragmentadas tomaram conta das redes sociais e do repertório de inúmeros jornalistas focados nos atos do presidente Jair Bolsonaro e nas mensagens fugazes das redes sociais.
O processo eleitoral, portanto, sofre um prejuízo incomensurável. A maioria dos eleitores fica distanciada das disputas estaduais, em particular da competição obscura entre os candidatos a deputado estadual e federal. Estes, no processo eleitoral, usam de recursos próprios para alimentar uma comunicação embalada em propaganda, enquanto os jornais locais pouco ou quase nada investem na apuração sobre o que fazem ou deixam de fazer.
Tomo como referência os jornais, impressos ou eletrônicos, de Campinas e região. Nos últimos tempos, jornais ou redações jornalísticas da cidade abandonaram de vez a diminuta cobertura da política praticada pelos deputados federais. Não acompanham o que fazem, como votam, o que pensam. De modo geral, é o que acontece com os jornais de circulação local, nas cidades interioranas.
As redações se preocupam com o dia a dia das Câmaras Municipais e Prefeituras, numa variação de linhas editoriais entre a adesão e a oposição aos poderes. Muitos jornais com esse perfil ainda dependem de verbas destinadas pelo poder executivo ou por autarquias municipais, o que muitas vezes inibe a cobertura de fatos e atos das autoridades.
Nas redes sociais, então, as páginas e canais dos deputados estaduais e federais são meios pelos quais conseguem superar o silêncio das redações para divulgar, em tom de propaganda, as decisões que tomam. A baixa audiência, porém, impede que a maioria do eleitorado saiba o que acontece nos bastidores das assembleias legislativas ou da agenda de seus eleitos na Câmara Federal. Os canais nos portais da Câmara Federal e das assembleias têm uma baixa ou relativa audiência conduzida pelos cabos eleitorais ou poucos eleitores militantes.
Nas redações, muitas vezes ocorre a publicação de notícias de segunda mão, releases, sobre algo pontual de iniciativa dos deputados. A pauta de cobertura política fica comprometida muitas vezes pela opção da linha editorial, pela pobreza de recursos para destinar repórteres para a tarefa ou mesmo pela falta de comprometimento com tais notícias.
Se os jornais de grande circulação, como Folha e Estadão, em São Paulo, ou o Globo, no Rio, dedicam mais tempo e espaço para a publicação de reportagens ou notícias sobre a Assembleia Legislativa, mais ainda destinam para apurar o desempenho na Câmara e no Senado Federal. Mas, com pautas que privilegiam temas de caráter universal, nacional. Ou de alguma crise instalada na assembleia.
Os jornais locais são condicionados pela limitação de recursos, principal justificativa nos tempos de hoje, o que praticamente anula a cobertura política desses representantes regionais. Mesmo porque, quanto menor o jornal (aqui, considero a circulação local e o índice populacional do município como referências), mais próximos os proprietários e jornalistas são dos deputados eleitos pelo município ou região. Desse modo, a política de boa vizinhança prevalece sobre a isenção crítica da apuração e da edição de reportagens. Proprietários ou dirigentes sabem que as autoridades políticas são possíveis fontes ou meios para obter receitas. Nesse universo, há dirigentes mais comprometidos com a comunidade, porém, não é o que predomina.
É recorrente a afirmação, clichê, de que o deputado ou o candidato a deputado aparece para o eleitor de quatro em quatro anos. A ideia expressa o vazio que ocorre entre uma eleição e outra. É nesse vazio que a imprensa local deixa de operar, e se torna cúmplice. Assim, reforça o imaginário de que os candidatos e deputados só aparecem de quatro em quatro anos.
No período eleitoral, as informações sobre os candidatos e os eleitos são pautadas, ainda sem a profundidade de uma cobertura pertinente aos fatos políticos. Há casos de os candidatos pagarem para jornais publicarem releases de suas campanhas, promessas e projetos. Tal procedimento empobrece o jornalismo político local, de modo a desvirtuar o significado de reportagem. A cobertura com tom partidário é presente ao realçar ações positivas, elogiosas, de um ou outro deputado candidato à reeleição.
Na era das redes sociais, os jornais interioranos adotaram os recursos digitais. Criaram e mantêm portais, sites, redes diversas para auxiliar na sustentação do título, da circulação e da sobrevivência editorial. Tais tarefas são desafios na medida em que nem sempre dispõem de jornalistas experientes para tanto. Assim, reproduzem no ambiente digital o que é trabalhado na redação do impresso, da emissora de rádio ou de televisão local ou regional. O tratamento dado desde a pauta até a edição ainda tem por referência a produção tradicional, distante dos recursos multimídias, da produção e edição de vídeos, áudios e dos sofisticados infográficos.
É evidente que os jornais locais, interioranos, foram impactados pelas tecnologias digitais. O desafio é como aproveitá-las para a cobertura política, de modo a manter o público ou a audiência informada sobre a rotina dos deputados estaduais ou federais. Muitas vezes, editor ou dirigente de redação reclama da impossibilidade da cobertura pois teria que dar voz a todos os deputados da região. Ou que a cobertura política desses representantes tem baixa audiência. Mesmo aqueles jornais, poucos, com tradição e de qualidade editorial acima da média sofrem com tais dificuldades.
Há ainda os deputados impermeáveis à abordagem dos jornais e jornalistas. Entre eles, aqueles eleitos por segmentos que mantêm a bolha em torno de seus interesses. Exemplo são deputados eleitos por grupos religiosos, hoje, especialmente, os evangélicos. A condição religiosa que o levou ao mandato é pobre no conteúdo político, na proposta de projetos significantes para elevar o índice de qualidade de vida do eleitor, uma vez que são focados em temas morais, como família, aborto, educação religiosa, evangelização, entre outros.
Basta acompanhar os jornais para verificar como a pauta é distante da movimentação subterrânea dos representantes desses segmentos religiosos. Mesmo os jornais de grande circulação ou as redações das emissoras de televisão, abertas ou fechadas, e das emissoras de rádio pouco investem na cobertura dos cenários onde atuam.
À medida do avanço das tecnologias digitais, da www, o jornalismo adotou o fundamento das pautas que giram em torno do global e do local. Ou seja, das facetas editoriais e da diversidade das identidades dos jornais, de modo a evidenciar a cobertura local, conforme a dimensão territorial e a audiência. Estudos avançaram nesse campo para entender melhor os pequenos e médios jornais de circulação local, ou, no máximo, em municípios vizinhos.
Esse modelo, porém, ainda não conseguiu alcançar uma cobertura sistêmica dos pequenos e médios jornais sobre os representantes legislativos regionais nas assembleias e na Câmara Federal. A não ser quando ocorre algum evento contaminado por crise, os jornais pouco aderem à cobertura da agenda dos deputados.
A sobrevivência trôpega do jornal impresso contribui sobremaneira para reduzir a ação das redações, o investimento em reportagens e a contratação de jornalistas mais experientes para a cobertura política. É evidência de uma crise que se prolonga, sem que haja indicativos de superação, em meio à cacofonia das dominantes redes sociais. As exceções, porém, são exceções.
Cacofonia alimentada pela superficialidade e pela fragmentação das ideias e projetos dos partidos e dos candidatos aos governos e à presidência da República. O desempenho, a tal performance, dominou o debate político empacotado por insultos e trocas de ofensas estimuladas pelas fake news e correlatos. O espetáculo maquiado pela linguagem do entretenimento tomou conta das redes sociais e dos debates nas emissoras de televisão. A estratégia do atual governante em Brasília, de distrair, de enganar, de fazer os jornais e o eleitorado olharem para lados diversos dos projetos ou da falta deles reforçou a omissão sobre as campanhas para as assembleias e para a Câmara Federal. Evidência disso foi a eleição dos bolsonaristas, para a Câmara Federal e para a Assembleia Legislativa, colados na imagem do presidente. Apenas performance manuseada nas redes sociais.
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Marcel J. Cheida é jornalista e professor na Faculdade de Jornalismo da Puc Campinas