A cobertura da imprensa sobre a polarização política contribui ou não para deteriorar a confiança na democracia entre leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de redes sociais? Esta pergunta foi feita em 2015 pelos pesquisadores norte-americanos Matthew Levendusky e Neil Malhotra [1] e desencadeou uma polêmica sobre as consequências deste processo no enfraquecimento da democracia.
Se há pouco mais de sete anos a questão dividiu os acadêmicos, hoje ela se tornou assunto de conversas de botequim, dada a enorme relevância que o tema passou a ter no cotidiano de todos nós. A intensificação do antagonismo entre “nós” e “eles” ameaça gravemente o princípio da tolerância e respeito por opiniões opostas, uma das bases do sistema democrático.
O jornalismo não é o único e nem o maior responsável pela polarização das visões de mundo que ameaça os princípios básicos de uma sociedade democrática, mas é certamente um dos seus componentes essenciais. As pessoas se informam através dos meios de comunicação que levam até elas os dados, fatos, eventos e ideias que alimentam o processo de produção de conhecimentos que move as nossas vidas.
A participação da imprensa é, portanto, bem clara. O que ainda é objeto de polêmica é a forma como o jornalismo pode evitar a progressão descontrolada do fosso político/ideológico entre visões diferentes do ambiente social em que vivemos. Narrativas e informações que reforçam as bolhas informativas, quando publicadas pela imprensa sem a necessária contextualização e checagem, tendem a gerar condutas antidemocráticas na população.
Este fenômeno tornou-se ainda mais relevante depois que a chegada da internet provocou o que é chamado de “avalanche informativa”. O aumento exponencial de versões diferentes sobre um mesmo fato, dado ou evento aumento enormemente a complexidade da atividade jornalística, principalmente a verificação da veracidade do material manipulado por repórteres, editores e comentaristas.
Escolhas complexas
A inovação tecnológica provocou transformações radicais no exercício do jornalismo, o que levou a profissão a viver uma situação inédita nas coberturas relacionadas à vigência do sistema democrático em boa parte do mundo contemporâneo. Duas questões passaram a ser decisivas na forma como repórteres, editores e comentaristas participam da polêmica sobre o futuro da democracia: a preocupação com a veracidade de informações num ambiente polarizado; e a diferenciação clara entre informação e marketing político.
O último debate entre candidatos presidenciais na TV Globo é um caso típico do dilema da veracidade. Várias inverdades e fatos descontextualizados foram mencionados por um candidato sem que fossem contestados pelo jornalista que estava mediando o evento. O profissional ficou diante da escolha entre funcionar como juiz ou como profissional da informação. Não exerceu nenhuma das funções, o que era previsível diante da perplexidade da maioria dos profissionais em desafiar a polarização para privilegiar a veracidade dos conteúdos levados ao público.
O debate entre presidenciáveis foi exaustivamente descrito pela emissora que o patrocinou como um programa jornalístico, mas o evento acabou se transformando um espetáculo de polarização. O jornalismo foi relegado a um plano secundário pela falta de uma visão clara de qual é o papel dos profissionais diante da polarização política promovida principalmente por candidatos de extrema direita. Esta indefinição acaba contribuindo para a quebra da confiança das pessoas nas notícias, alimenta a desilusão de eleitores em relação à política e abala a confiança de todos no sistema democrático, como mostra o pesquisador Cass Sunstein, autor do livro Going to Extremes (sem tradução em português). [2]
Robôs políticos
Para restabelecer o papel central do jornalismo como função de interesse público é indispensável que os profissionais e as empresas passem a dar prioridade absoluta à busca da veracidade dos dados, fatos e eventos publicados nos meios de comunicação em massa. Isto significa abandonar a atual agenda de notícias, trocar o imediatismo pela contextualização e priorizar a relação com o público. Não é uma decisão fácil porque o ritmo frenético no fluxo de informações que circulam na mídia e nas redes sociais supera a capacidade do jornalismo de checar a veracidade de tudo o que é noticiado. Assumir uma postura reflexiva e moderadora no meio de uma conjuntura polarizada implica mudanças de rotinas, normas e valores que a maioria dos profissionais ainda resiste em incorporar ao seu cotidiano.
O outro dilema enfrentado pelo jornalismo nesta era de polarização político/social é ainda mais complexo porque envolve posicionamentos diante da nova forma como são criadas percepções de fatos, dados e eventos [3]. Antes da internet, quando a circulação de notícias era relativamente escassa, as pessoas podiam refletir sobre o que estava acontecendo num ambiente informativo bem menos caótico do que o atual. Com a internet surgiu a avalanche informativa que provocou uma mudança radical no comportamento do público.
A análise dos fatos foi substituída por impressões, já que o bombardeio noticioso deixou as pessoas sem tempo para pensar. As opiniões passaram a ser formadas pelo acúmulo de dados incorporados à mente de leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de redes sociais. O jornalismo se mostrou muito lento na identificação desta mudança que obviamente afeta os processos de produção e publicação de notícias, ainda mais quando os robôs eletrônicos multiplicam o discurso do ódio e postagens antidemocráticas em redes sociais.
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Notas
[1] A pergunta foi feita no artigo Does Media Coverage of Partisan Polarization Affect Political Attitudes?, publicado na revista Political Communication , localizável aqui.
[2] Ver análise e dados do livro Going to Extremes em https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/655101?journalCode=ssrz
[3] Rethinking journalist–politician relations in the ageof populism: How outsider politicians delegitimize mainstream journalists
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.