Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O âncora e o apartheid social

No último dia de 2009, em meio às felicitações de ano novo, um grave fato provocou uma avalanche de reflexões sobre o falso moralismo da elite brasileira e seus valores nos seus vários níveis. No entanto, ao invés de encobrir, revelou com profundidade o apartheid social brasileiro e os preconceitos que o mantêm. E antes que me acusem de ironia, não estou aqui fazendo pouco caso das tragédias naturais, único fenômeno que consegue unir ricos e pobres no Brasil. Não devolverei a agressão à classe trabalhadora na mesma moeda.

O jornalista Boris Casoy, da Rede Bandeirantes de Televisão, após uma saudação de ano novo de dois garis, no Jornal da Band, na passagem da vinheta de abertura daquele noticiário, sem perceber que o áudio estava aberto, saiu-se com a seguinte frase: ‘Mas que merda, dois lixeiros desejando felicidades, do alto de suas vassouras, lixeiro, o mais baixo na escala do trabalho..’. Isso entre risos dos membros de sua bancada (ver aqui).

Boris Casoy é conhecido por geralmente aparecer questionando posturas do meio político e social brasileiro, finalizando seus comentários com a frase ‘Isso é uma vergonha!’ Tal bordão utilizado por esse senhor cai-lhe bem sobre a própria cabeça, tirando-lhe a máscara e o colocará numa situação delicada se vier a repeti-la. Ela não terá qualquer fundamento moral que a justifique. A ofensa causada a dois trabalhadores, e a uma categoria profissional por extensão, reflete a hipocrisia de nossa elite e de parte de setores da imprensa brasileira. Aqueles dois trabalhadores nada mais faziam do que do alto de sua humildade desejar a todos um feliz ano novo e dias melhores.

No entanto, a mesma TV que lhes dá tal espaço, os apunhala pelas costas com tamanha discriminação e falta de respeito. Um caso para demissão imediata fosse outra a postura da direção da emissora e não essa que se mostra conivente com tamanho preconceito.

Principal crise é de valores

Ora, o ‘ato falho’ de Boris Casoy, eufemismo usado para aliviar a gravidade de sua grosseria, apenas refletiu o que já vemos na programação televisiva brasileira: a baixaria, o incentivo à violência e o preconceito disfarçado no discurso politicamente correto, que encena uma falsa inclusão, onde ainda vemos as tradicionais diferenças, no sentido negativo, sociais, sexuais e raciais, sendo reforçadas nas novelas, nos programas de auditório, nos programas pseudo-infantis e nos telejornais. Uma TV que não educa, que não pensa e que não ajuda o país a crescer crítica e intelectualmente, preferindo varrer seu preconceito para debaixo do tapete com suas vassouras de cristal. Pedir desculpas apaga o tamanho de tal agressão, como fez o jornalista no dia seguinte? Não, só reforça a hipocrisia desse setor da elite e não difere em nada das desculpas lavadas da classe política que inventa mensalões, esquemas de panetones, desvia verbas públicas, burla painéis eletrônicos, pega criancinhas no colo, chora, pede desculpas etc. e depois lava as mãos tal qual um Pilatos estúpido.

Esse tipo de profissional envergonha toda a classe trabalhadora (e isentemos obviamente os bons jornalistas) e entristece toda uma sociedade, na medida em que revela o pensamento verdadeiro e discriminatório de alguns dos ditos ‘formadores de opinião’. No entanto, paradoxalmente, essa TV que aí está nada mais é que espelho da sociedade brasileira e seus valores mais mesquinhos. E se aceitamos esse tipo de televisão é porque somos isso mesmo, um bando de dissimulados, narcisistas, canalhas, hipócritas e/ou no mínimo coniventes com todo esse estado de coisas. Uma sociedade que alimenta o mundo das celebridades instantâneas, que incentiva a política do ‘jeitinho brasileiro’; que esconde dinheiro nas meias, cuecas ou nas bocetas (pequenas bolsas ou caixas, senhores (as) pudicos (as), porém, podendo ficar maiores dependendo da ganância). Que fura filas, que não respeita os mais velhos, que não aceita as diferenças, no sentido positivo, e que vive sonhando em ‘se dar bem’ do dia para a noite, seja na Fórmula 1, no futebol ou num boteco. Seja também no poder executivo, no legislativo ou no judiciário.

As instituições no Brasil estão falidas e nossa principal crise é de valores.

Aqui só cabe uma palavra: Vergonha!

******

Ator e professor de teatro e literatura, Brasília, DF