Em sua coluna mais recente (O Globo, 11/1/2010), Ricardo Noblat aborda o escândalo do Distrito Federal, perguntando-se sobre a natureza do país em que um deputado filmado quando escondia dinheiro nas meias pode voltar à cena como presidente da Câmara Legislativa. Escreve:
‘Está para se ver ato mais revelador do estado de apodrecimento dos costumes políticos na capital da República. Licenciado do cargo por 60 dias, Prudente antecipou seu retorno depois de ter explicado – sem sequer franzir o cenho – por que escondeu dinheiro nas meias: `Não uso pasta´.’
Para bem observar esse episódio e a justa indignação do jornalista, vale a pena lembrar a coluna dele próprio no final de dezembro passado. Nela, Noblat desencava da história pitoresca do Nordeste a figura de ‘Mocidade’, uma personalidade extravagante protegida por João Agripino, governador da Paraíba em fins da década de 1960. Na verdade, foram vários os políticos e, mesmo, intelectuais longe da Paraíba que cultivavam as tiradas singulares de Mocidade. Mas João Agripino lhe dava comida e alojamento (Mocidade recusava-se a qualquer trabalho), além de recebê-lo vez por outra para bate-papo.
O fato relatado por Noblat refere-se a uma greve estudantil contra o governo, em que Mocidade tomou o partido dos jovens. Foi chamado às falas pelo governador, que lhe pergunta então se não era o governo criticado que o alojava e alimentava. Respeitosamente, confirmando tudo, Mocidade, porém, levantou um ponto crucial: ‘Mas Excelência, governo foi feito para apanhar!’
Razão comum
A resposta é digna de um filósofo, evocativa, digamos, de um Diógenes, que buscava loucamente a verdade pelas ruas de Atenas, com uma lanterna na mão. A Cidade-Estado grega distinguia, na vida do cidadão, uma ordem que lhe era própria (idion) e outra, comum (koiné), portanto, ‘idiotia’ e política. Uma razão excessivamente própria, a desmedida da idiotia, podia equivaler à loucura. Não se esqueça Chesterton, para quem ‘louco é alguém que perdeu tudo, menos a razão’. Mas da idiotia compreensível podia e pode advir alguma reflexão política para a vida comum.
Até algumas décadas atrás, nas pequenas cidades do interior nordestino, o ‘louco’ era razoavelmente tolerado, às vezes protegido. A internação em nosocômios parecia ocorrer após um certo limiar demográfico, quando o fato comunitário começava a transformar-se em societário, com regras comuns mais impessoais. É possível fazer um tratado sobre os casos, apenas no Nordeste, de personalidades ‘loucas’ não encarceradas, mas discretamente cultivadas pelos concidadãos.
O que Noblat deixou de comentar em sua coluna é que Mocidade era também apontado como ‘louco’. Um insano com tiradas interessantes, às vezes reflexivas, às vezes irrisórias, mas decididamente à margem da razão comum. Ele apenas não chegava à desmedida característica dos que seriam internados. Uma frase dele gravou-se em nossa memória adolescente: ‘É preciso ter muito juízo para ser louco na Paraíba’.
Jogo do extermínio
O que tem tudo isso a ver com o episódio do Distrito Federal?
É que a indignada perplexidade do jornalista talvez possa encontrar algum material para reflexão na suspeita levantada pela hipótese ‘pós-modernista’ da transpolítica no sentido de que haveria um moderno pacto subconsciente entre as massas e os políticos, segundo o qual estes últimos seriam tolerados enquanto se constituíssem, no limite, como objetos de irrisão. Ou seja, com o estiolamento da democracia parlamentar e a transformação da representatividade em mero jogo de calendário eleitoral, a classe política seria apenas tolerada, por impossibilidade de alternativa, como uma expressão absurda da razão.
O eleitor médio oscilaria entre a apatia e secreta empatia com a figura que, no fundo, tem a verossimilhança irrealista de uma personagem de comédia. A realidade do assalto ao erário público, das negociatas, do suborno, da mafialização da governança etc. pode ter, na memória eleitoral, a mesma fugacidade de uma imagem de tevê ou a curteza analítica de uma mensagem de twitter: os malfeitores retornam à cena como bons bufões e, em vez de aplausos, ganham votos.
Basta ler atentamente o pós-modernista Jean Baudrillard para encontrar, difratado em suas análises, esse argumento de rejeição do realismo da política. Para ele, ‘o poder continua a ser o que é, mas não tem mais nenhum sentido falar do que ele representa, nem representá-lo como real’. Só que o irrealismo tem suas graças e seus perigos de morte. O Estado totalitário pode fazer o jogo do extermínio de sua população, a exemplo do ‘sonho louco do déspota de acabar com seu próprio povo (Hitler em 1945 condenando à morte o povo alemão)’.
Absurdo inteligível
Não faltará quem, imbuído da certeza racionalista da dialética, ache sofisticamente absurda ou apocalíptica esse tipo de pensamento. Mas talvez possa ao menos concordar que há de algo de irônico no fato de que algo supostamente tão importante como a política tenha, na maior parte dos casos, cada vez mais, um tratamento tão canhestro, tão tresloucado e, não raro, tão risível. É que possivelmente já perdeu, assim como o capital financeiro, o senso das determinações objetivas, liberando-se para a comédia, para a mitologia ou para o terror.
A consciência dialética faz a ressalva da esquerda histórica. Baudrillard mostrava-se cético:
‘A esquerda é Polidor. Ela pedala generosamente para o poder, as multidões a festejam e, no momento de triunfar, ela recai na segunda posição, na sombra, no nicho da oposição. Ou então, a esquerda é Eurídice: desde que o poder se volta para agarrá-la, ela volta ao inferno, virgem e mártir dividida pela sombra dos tiranos.’ (Em O PC ou os paraísos artificiais da política)
Pode parecer absurdo, mas Mocidade entenderia.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro