Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Deus vai votar em Bolsonaro?

(Foto: MART PRODUCTION/ Pexels)

Para saber o que se trama entre pastores das ovelhas evangélicas, nunca bloqueei o que me chega deles pelas redes sociais, geralmente fake news cabeludas, mentirosas ao extremo, digeridas sem problema por pessoas ingênuas ou tolas, sem cultura e sem espírito crítico, na maioria leitoras de um livro só, a Bíblia, geralmente sem entender. Pessoas principalmente pobres, facilmente manipuláveis.

Nunca poderia imaginar, quando via, ainda adolescente, passar alguém no domingo com um livro preto e maçudo numa das mãos, pelas ruas do meu bairro pobre, que, setenta anos depois, os então chamados “quebra-santos” poderiam realmente quebrar muita coisa importante.

Antes que alguém me considere preconceituoso, acho necessário deixar claro não ser esta uma visão vinda de fora dos chamados arraiais evangélicos, mas de alguém criado por mãe e pai evangélicos, frequentando escolas dominicais, não perdendo nenhum culto, observando o domingo sem cinema e sem futebol, participando das atividades juvenis e chegando mesmo a ser presidente de uma UMP, como se chamavam ou, talvez ainda se chamem, as uniões da mocidade presbiteriana. Grupos de jovens ginasianos ou de cursos colegiais e pré-universitários, nos quais se discutia o papel e a responsabilidade do jovem evangélico dentro da sociedade e se aprendiam as regras parlamentares, com eleições, propostas e votações.

Nos anos 50 e 60, os protestantes, como eram chamados os hoje mais conhecidos como evangélicos, tinham uma aura de gente séria, correta e honesta, na linha direta dos exigentes calvinistas. Meu pai, um filho de imigrantes espanhóis, que deixou a tradição católica para se tornar protestante, sempre foi para mim um modelo de caráter. Éramos pobres, mas orgulhosos, não servis. Dele herdei sua impulsividade e seu falar franco e direto, nem sempre diplomático. Minha mãe, conservadora, costureira de profissão, tinha uma visão evangélica do lar, tudo tinha de ser muito limpo, a casa e as roupas bem passadas, nada de manchas e nem poeira. Morávamos no morro, refeições simples, mas a casa cheirava a limpeza.

Pode parecer estranho, mas foi meu avô materno, pequeno fazendeiro e comerciante numa pequena cidade paulista, quem me lançou a dúvida em matéria de religião. Bom aluno, depois de ler e reler os livros de meu pai, lia o que encontrava na casa dos parentes que vez ou outra visitávamos. Meu pai tinha sempre o jornal do dia em casa e ficou orgulhoso quando viu publicada uma proposta que eu enviara ao jornal, escrita com caneta tinteiro, sobre uma maneira de melhorar os transportes coletivos. 

Essa era a cultura protestante dentro de casa – aprender, se instruir, ler, discutir o que se lia, melhorar sempre, aspirar uma sociedade com leis justas e menos pobreza.

Eu devia ter uns 16 anos quando senti rolar alguma coisa nova dentro da igreja; eram os movimentos sociais externos que chegavam e eram repercutidos pelo jornal Mocidade. Era a época de jovens líderes presbiterianos como Paulo e Waldo César, fundadores do jornal Mocidade, de Billy Gammon na Secretaria Geral da Mocidade, reverendo Richard Shaull, pastor João Dias de Araújo, de Paulina Steffen.

Esses movimentos eram abafados pela direção de minha igreja, cujo pastor tinha sido Boanerges Ribeiro, alguns anos mais adiante o interventor nos seminários com criação de verdadeiras IPMs, demitindo pastores e professores “de esquerda”, contrários à intervenção militar e à subsequente ditadura. Não esqueço de Adarcir Seidl, alguns anos mais velho que eu, que defendia os artigos nem sempre ortodoxos publicados no Mocidade, que acabou sendo fechado, pouco antes da demissão de Billy Gammon, seguido de censura e uma intervenção em 1960, que fechou a Confederação Geral da Mocidade. As UMPs se tornaram grupos religiosos e recreativos. Quando houve o golpe de 1964, eu já estava longe da igreja. Nessa época, os protestantes não chegavam nem a 10% da população brasileira.

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Pesquisando sobre meus anos protestantes, encontrei uma bem informativa monografia do professor Ivan Pereira Guedes, da Universidade Mackenzie, sobre a juventude presbiteriana de minha época, quando o protestantismo de preocupação social (me lembro do pastor metodista Almir dos Santos e do meu amigo Eliseu de Carvalho) sofreu o impacto da ditadura militar, que conseguiu intervir nas suas estruturas eclesiásticas.

Essa monografia é seguida de uma extensa bibliografia, ideal para quem quiser se aprofundar no conhecimento da trajetória do protestantismo no Brasil, que mudou de nome, de formato e de mensagem, optando por se beneficiar de vantagens políticas, desfazendo-se do chamado evangelho social.

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Não era minha intenção personalizar este comentário, desculpem-me os leitores, mas nestes quatro anos de governo Bolsonaro tenho procurado analisar de diferentes ângulos o surgimento do fator evangélico na política brasileira e, desta vez, escrevo às vésperas de eleições de importância fundamental para o destino do Brasil, cujos resultados dependem em grande parte do voto populista evangélico.

Donde a vontade de entender, um pouco que seja, essa ascensão vertiginosa desse fenômeno social evangélico em tão poucos anos. Uma ascensão com seus paradoxos; o maior deles é vir conjugada com uma exploração acentuada de um sentimento extremista nacionalista, quando, na verdade, esse evangelicalismo não é um produto natural local, mas de importação. Nem mesmo de origem universal, mas uma doutrina refeita segundo modelo norte-americano e adaptada para servir como um tipo de exportação colonialista, a fim de implantar e reforçar comportamentos conservadores, reacionários e alienados, e impedir o surgimento de movimentos sociais independentes e de justiça social.

Onde e como ocorreu essa transformação do cristianismo original, cuja vocação é o bem-estar do ser humano dentro da sociedade, em alguma coisa espúria? Não é a primeira vez que ocorre a transformação da ideologia do cristianismo em ideologia do poder, mas é desafiante para um pesquisador saber como ocorreu esse processo de desvirtuamento, no qual se manteve a forma, mas se perdeu a mensagem.

Deixemos de lado o espírito próprio do cristianismo de paz e de comunhão com todos, hoje substituído por uma linguagem guerreira, pela rejeição do próximo, pelo desejo de ofender e pela presença do ódio subliminar. Para resumir, vamos tentar entender como centenas de milhares de pastores convenceram seus fiéis a apoiarem, a seguirem e mesmo a obedecerem a alguém que é o oposto da ideologia cristã. Não sendo religioso, é praticamente impossível compreender como os evangélicos nada têm a opor a alguém que professa o culto das armas, defende a tortura e elogia o maior torturador dos anos da Ditadura, assim como rejeita a igualdade das mulheres com os homens, provoca centenas de milhares de mortes ao ser contra a vacina, despreza negros e indígenas, destrói a natureza com o desmatamento intensivo, anula verbas para a educação e a cultura, num retrocesso ao que vinha sendo feito no Brasil desde o fim da escravidão, das leis trabalhistas, do previdência social e do salário mínimo?

Como a religião pode manipular as pessoas a ponto de serem contra os princípios básicos da moral e defenderem preceitos, ações e leis contra elas próprias? E como pode mesmo incitar seus fiéis à violência contra pessoas com pensamento diverso?

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Por que o título perguntando se Deus vai votar em Bolsonaro? Foi um fake news evangélico que recebi de um pastor. Vinha do Canal Testemunhos Fortes, onde uma crente evangélica contava ter recebido uma “revelação” de Deus, pela qual Bolsonaro será reeleito. Depois disso, fiz uma busca e descobri que existem muitos pastores também fazendo revelações e alguns contando terem “falado” com Deus, sempre com a mesma mensagem eleitoral de vitória.

Ora, segundo a própria Bíblia, já na época de Moisés (que tanto citam os evangélicos), era considerada abominação todo tipo de adivinhação e visão, justamente para fazer diferença com os pagãos que acreditavam em magia, conversa com mortos e daí em diante. Ou seja, a multiplicação do evangelismo e de suas redes sociais, está também fazendo surgir um produto híbrido evangélico, no qual se misturam até as proibições encontradas na Bíblia. Em todo caso, com ou sem adivinhações, revelações ou conversas diretas, as redes sociais evangélicas dão a entender que Deus, se votasse, votaria em Bolsonaro.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.