Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Finalmente a imprensa aprendeu como funciona o governo Bolsonaro

Imprensa tradicional foi relevante para o leitor durante a pandemia. (Foto: Bru-nO/ Pixabay)

A imprensa tradicional já era. Essa sentença era dada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), ao assumir o seu mandato em 2018. A mesma sentença já tinha sido dada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (republicano), quando assumiu em 2017. A exemplo de Trump, o presidente brasileiro se comunicava pelas redes sociais. De fato, a imprensa do Brasil estava em baixa perante o seu leitor. Na época, o então juiz federal Sergio Moro e o procurador da República Daltan Dallagnol, da Operação Lava Jato, de uma maneira muito habilidosa usaram a concorrência entre os jornalistas e transformaram os jornais em uma espécie de validadores das investigações policiais sobre corrupção e outros crimes. Relatórios de delegados, delações premiadas, escutas telefônicas, vídeos e outros relatos de investigados começaram a vazar para a imprensa e serem publicados como se fossem sentenças definitivas. Toda a história foi desmontada pelo site The Intercept Brasil, que publicou mensagens trocadas entre Moro, Dallagnol e outros procuradores da República “ajeitando os processos” – há um vasto material publicado na internet.

O trabalho do Moro nas redações foi facilitado pelas demissões em massa de jornalistas realizadas pelas empresas de comunicação como forma de enfrentar os problemas econômicos decorrentes da fuga de assinantes e anunciantes para outras plataformas. Os profissionais que restaram nas redações tiveram um aumento expressivo na sua carga de trabalho e passaram a receber um dos mais baixos salários já pagos à categoria. Esse é o principal motivo pelo qual os jornalistas patinaram muito para entender como funcionava o governo Bolsonaro. Antes de seguir com a história vou fazer uma observação que considero importante. Saí da redação em 2014 e desde então tenho me dedicado a leituras de trabalhos sobre a nossa profissão. Analiso matérias publicadas e principalmente o trabalho dos comentaristas políticos. Claro, também faço os meus livros de reportagem. Portanto, o que vou falar a seguir não é opinião. São fatos.

Voltando a nossa conversa. Bolsonaro assumiu o governo empunhando a ressurreição dos valores da Guerra Fria, uma disputa ideológica travada entre os Estados Unidos, capitalista, e a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, comunista, que durou de 1945 até 1991. Um dos símbolos do fim desse período foi a queda do Muro de Berlim, uma barreira física construída em 1961 para dividir as Alemanha Ocidental (capitalista) e Oriental (alinhada ao bloco soviético). Foram durante os anos da Guerra Fria que nasceram as mais sanguinárias ditaduras militares da América do Sul. A do Brasil durou de 1964 a 1985.

Bolsonaro é capitão reformado do Exército e ferrenho defensor e admirador dos militares que deram o golpe em 1964. Assumiu o governo defendendo os torturadores dos presos políticos durante a ditadura. Não só defendia os torturadores como também fazia gracinhas com as pessoas que tinham sido torturadas. Até então, nenhum presidente tinha feito tal coisa. Ele também se gabava de não precisar dos partidos políticos para governar. Falava que iria governar com as bancadas temáticas. Uma leitura nos noticiários da época mostra a perplexidade dos jornalistas, em especial os comentaristas políticos, com a situação. Realmente, não se sabia nas redações o que acontecia entre as quatro paredes do governo federal. Foi nessa época que apareceu um grupo de pessoas no governo apelidado pela imprensa como Gabinete do Ódio. Os principais personagens do grupo eram os filhos parlamentares do presidente: Carlos, vereador do Rio, Flávio, senador do Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal por São Paulo. A principal tarefa do gabinete era espalhar fake news sobre ex-aliados do presidente.

Realmente, 2019 não foi um grande ano para a imprensa brasileira, que era pautada pelos mirabolantes factoides nascidos e criados na Presidência da República. A cada hora pintava uma manchete nova nos noticiários. A cobertura do governo federal parecia um carrinho correndo em uma montanha-russa. Nos primeiros meses de 2020 a situação começou a mudar. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia causada pela Covid-19. De imediato, Bolsonaro se posicionou como negacionista do poder de contaminação e letalidade do vírus. E com isso ganhou fama ao redor do mundo. A imprensa se posicionou ao lado da ciência e tornou-se uma fonte de informações seguras que ajudaram a salvar vidas. A pandemia matou 670 mil brasileiros e a responsabilidade do governo sobre as mortes é relatada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19, a CPI da Covid.

A imprensa brasileira saiu do período da pandemia com um saldo muito positivo de credibilidade junto ao seu leitor. E, nos dias atuais, os jornalistas brasileiros aprenderam como funciona o governo de Bolsonaro. Sabem quem é quem no governo. E já conseguem separar o blefe da verdade. Tenho dito nas conversas com colegas pelo interior do Brasil que devemos separar a situação econômica das grandes empresas de comunicação da nossa vida profissional. A empresa é problema dos seus acionistas. A nossa profissão é problema nosso. E hoje não precisamos ser empregados de uma empresa para exercer a nossa profissão. Já foi assim.

Não é mais, graças às novas tecnologias que facilitaram as coisas para o nosso lado. Sempre lembro que durante a ditadura militar foi construída no Brasil a chamada Imprensa Alternativa, que era um conjunto de jornais e outras publicações que, além de dar trabalho para os colegas perseguidos pelos militares, também inovou nas técnicas de texto, fotos e ilustrações. Nos dias atuais, um foca é capaz de fazer um texto, um vídeo e um áudio. A imprensa brasileira levou tanta porrada do governo Bolsonaro que cresceu, aperfeiçoou a sua técnica de apuração e tornou-se relevante para o seu leitor.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.