Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cenas reais do que escapamos

(Dexillum/ Deviant Art)

Enquanto os fascistas comemoram na Itália os cem anos da triunfal marcha sobre Roma que colocou Benito Mussolini no poder, o Brasil festeja a queda de Bolsonaro e do que mais viria junto. Lula venceu as eleições. Como diz o poema de Carl Sandburg, “há homens que não se vendem”. E a melhor maneira de festejar esta vitória é assistindo ao monumental “Marcha Sobre Roma”, do cineasta irlandês-escocês de 57 anos, Mark Cousins, em cartaz na Mostra de Cinema Internacional de São Paulo deste ano. O documentário foi um aviso prévio de que o Brasil poderia viver se Bolsonaro vencesse as eleições. E dá exemplos dos seguidores Trump nos EUA, Viktor Oban na Hungria, Narendra Modi na Índia, Marine le Pen na França, Matteo Salvini e Giorgia Meloni na Itália. E claro, Jair Bolsonaro (vaias na plateia).

Mussolini chegou a Roma a 30 de outubro de 1922, no dia seguinte foi nomeado primeiro-ministro pelo rei Vitor Emanuel III, que temia um golpe das milícias fascistas, os camisas negras. Foram mais de 20 anos de violência, autoritarismo, leis raciais duras, associação a Hitler, terror, enquanto a Segunda Guerra fabricava a Conferência de Wansee, selando o extermínio de judeus nos campos de concentração.

Cousins faz cortes para outros filmes sobre Mussolini, como o dia do encontro com Hitler, “Um Dia Muito Especial”, de Ettore Scola, onde Marcelllo Mastroiani vive um radialista homossexual e Sophia Loren, uma dona de casa insatisfeita com o marido. Cinéfilo de raiz, Cousins apresenta outras obras sobre o tema, como “Salò, os 120 Dias de Sodoma”, que esteve há poucos meses em cartaz no festival sobre Pasolini, o diretor, “O Conformista”, de Bertolucci, “Pay Day” de Charles Chaplin, “Amai-vos Uns Aos Outros”, de Carl Dreyer. Além do primeiro documentário conhecido, “Nanook, o Esquimó” de Robert Flaherty. Coroados com a sátira de Augusto Tretti em 1970 que coloca três felinos, o leão, o tigre e o leopardo representando os militares, os americanos, os proprietários de terras. 

Mas a marcha de Mussolini não seria triunfal para as próximas gerações sem o filme do fascista Umberto Paradisi, “A Noi”. O documentário antecedeu “O Encouraçado Potemkim”, de Eisenstein (1925), e “O Triunfo da Vontade” de Leni Riefenstahl (1935), que imortalizou o nazismo.

No documentário, Paradisi mexeu e remexeu na verdade, removeu a chuva que enlamaçava a marcha, triplicou os soldados e participantes cortando e colando no celulóide as mesmas cenas e participantes várias vezes, de trás para a frente, de frente para trás, inserindo a bandeira e o brasão, tornando o acontecimento tão grandioso como uma megaprodução de Cinecittà. O filme tornou-se a própria verdade, a própria Marcha, que aconteceu para impedir outra marcha, a do poeta ligado à extrema-direita, Gabriele D”Annunzio (1863- 1938), conferindo assim toda glória a Mussolini. 

Como Cousins relata, foram 44 minutos sujos de cinema sobre o Partido Nacionalista Fascista. Era um filme fake. Antecedeu as atuais fake news que numa boa colagem coroaria o nosso fascismo e o de Trump, Orban, Modi etc., um “grito oceânico que moldou o século XX” – a narração de Cousins deixa claro.

“Marcha Sobre Roma” revela os bastidores dos maçons pagando 3 milhões de liras aos fascistas permitindo, assim, a liberação da marcha pelo rei. Conta qual o livro de cabeceira dos fascistas, “Psicologia das Massas” de Gustave le Bon, “a multidão funciona como seres inferiores, tendem à histeria”. E os ingredientes que não podiam faltar no regime; além do machismo, a virilidade e as armas: a religião. O fascismo usou a linguagem de Deus. Mussolini assinou o acordo que permitiu o Estado do Vaticano em Roma com o papa Pio XI; a Igreja católica aproximou-se do fascismo e vice-versa.

Além da narração de Cousins, a atriz italiana Alba Rohrwacher marca a passagem dos capítulos como uma observadora comum, que vê mulheres enviadas ao hospício, mulheres que não queriam ter os cinco filhos sugeridos pelo Duce, o artista Duce, o leão Duce, o Viagra Duce. Imbrochável? 

Quantos morreram sob o fascismo? Nas invasões à Albania, à Abissinia (Etiópia, Eritréia), onde foi usado o mortal gás mostarda, e o rei Vitor Emanuel III reivindicava ser imperador? Milhares.

Muitos embarcaram na onda, como Freud, que enviou à Mussolini um livro com dedicatória ao “herói da cultura”. Quantos na época sucumbiram aos seus encantos? A ditadura salazarista em Portugal, Franco na Espanha, seguidores na África, no Japão. Todos adoravam os gestos, os discursos, as motociatas.

Foi disso ou perto disso que escapamos depois de quatro anos de desobediência à Constituição, uso indevido da Lei de Segurança Nacional nascida na ditadura, paralisação da cultura e educação, xingamentos, desrespeitos, misoginia, racismo, ameaças, armas. 

Na Itália no final da Segunda Guerra em 1945, Mussolini e sua amante Clara Petacci foram fuzilados pelos partigiani, seus corpos pendurados de cabeça para baixo. Aqui, Bolsonaro não se elegeu. 

Podemos cantar com Alba Rohrvacher, como no final do documentário de Cousins, “Bella Ciao”.

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Norma Couri é jornalista e diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).