IMPRENSA
Daniel Bramatti
Liberdade de imprensa é prioridade nos 30 anos da ANJ
‘A Associação Nacional de Jornais (ANJ) chega aos 30 anos festejando a consolidação da liberdade de imprensa no País, mas, ao mesmo tempo, preocupada com os casos de imposição de censura por juízes de primeira instância.
Após cinco anos consecutivos de aumento da circulação de jornais no País, a entidade – cujo aniversário será comemorado amanhã – ainda não mediu o impacto da crise econômica sobre o setor. Mas vê com otimismo a possibilidade de crescer em 2010, em sintonia com a recuperação da economia como um todo.
Entre os desafios para o futuro, no topo da lista está a transição de um modelo de negócios baseado na mídia impressa para outro que, em determinado momento, será prioritariamente digital.
‘O Brasil vive um pleno regime de liberdade de imprensa’, destacou o diretor executivo da ANJ, Ricardo Pedreira. ‘Mas há um problema que preocupa a todos nós, uma prática muito frequente, que é a censura por meio de decisões judiciais. Embora a censura seja, de forma muito clara, proibida pela Constituição, ela vem acontecendo.’ O mesmo problema foi destacado por Judith Brito, presidente da ANJ. ‘Temos a lamentar as seguidas decisões do Poder Judiciário, em sua primeira instância, de exercer a censura prévia. Dos 31 casos contra a liberdade de imprensa sobre os quais a ANJ se manifestou nos últimos 12 meses, 16 são decorrentes desse tipo de decisão.’
Para os dois dirigentes, autores de um livro sobre a história da ANJ (leia texto nesta página), o fenômeno é restrito e as ordens de censura não resistem a uma segunda análise pelo Judiciário. ‘Pessoas alegam que determinada informação vai lhes ser prejudicial, e previamente alguns juízes impedem o meio de comunicação de veiculá-la. Na instância seguinte, a liminar cai, mas aí o mal já está feito.’
Ambos citaram como exemplo o episódio enfrentado pelo Estado, que está impedido por decisão liminar de publicar informações sobre investigação da Polícia Federal que atingiu Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). ‘Pode parecer censura que afeta apenas um jornal, mas na verdade afeta a imprensa, os jornalistas e o jornalismo, e, mais ainda, prejudica a sociedade como um todo, porque agride seu direito sagrado à informação’, disse a presidente da ANJ.
AUTORITARISMO
Episódios de censura à parte, 2009 ficará marcado na história da ANJ como o ano em que foi ‘enterrada’ a Lei de Imprensa, herdada do regime militar e contestada há décadas por jornais e jornalistas. Em abril, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela nulidade da lei, por sua incompatibilidade com os princípios democráticos da Constituição de 1988. ‘Era uma lei que previa prisão de jornalistas e fechamento de jornais, com dispositivos totalmente contrários à Constituição de 88. Por isso, já estava praticamente em desuso, mas permanecia como uma ameaça potencial ao direito da sociedade de ser livremente informada’, disse Judith Brito.
A participação dos jornais no desmonte do aparato repressivo da ditadura militar também é destacada no balanço de três décadas de atuação da ANJ. A imprensa foi uma das frentes em que políticos e representantes da sociedade civil conseguiram brechas para desafiar o autoritarismo.
‘O papel da imprensa (na transição democrática) foi importantíssimo’, disse Fernando Lattman-Weltman, pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). ‘Por sua própria natureza, a imprensa tem compromisso com uma série de liberdades que são fundamentais para o exercício da vida democrática. Ela própria é uma instituição política fundamental. Fornece subsídios para nossas escolhas na vida política e social. Além disso, também forma os enquadramentos pelos quais analisamos e interpretamos a realidade.’
O pesquisador também aplaude o fim da Lei de Imprensa, mas lamenta que em seu lugar não tenha sido estabelecido outro marco legal. ‘Talvez fosse positivo algum tipo de autocontrole da mídia. Há casos em que cidadãos podem se ver sob o foco de uma reportagem sensacionalista.’
CRISE
Na Europa e nos Estados Unidos, a internet é apontada como a causa da queda de circulação dos jornais. No Brasil, o impacto é sentido de forma diferente, principalmente por conta do crescimento dos jornais populares, coincidente com os ganhos de renda obtidos nos últimos anos pelas camadas mais pobres da população. ‘Não houve canibalização dos títulos mais tradicionais, mas a formação de um novo mercado. Muita gente não tinha renda e hábito de leitura. É fenômeno típico de economias emergentes, também aconteceu na China e na Índia’, disse Ricardo Pedreira.
Para a ANJ, ainda é cedo para avaliar o impacto da crise econômica sobre o setor. ‘Vínhamos até setembro, outubro do ano passado num processo de crescimento de circulação e isso foi interrompido. Mas trata-se de uma questão conjuntural. Felizmente as notícias sobre a economia são cada vez mais positivas, e a circulação dos jornais voltará a crescer’, previu Judith Brito.
Sobre a concorrência das novas mídias, Pedreira afirma que é preciso buscar um modelo sustentável. ‘Nos Estados Unidos criou-se a cultura de que a internet é território da informação livre e gratuita. Isso não fecha. Como é que uma empresa vai produzir seu conteúdo e entregá-lo gratuitamente?’ O fato de jornais dos Estados Unidos e da Europa enfrentarem concorrência mais forte da internet pode ser vantajoso para o Brasil, segundo o diretor da ANJ. ‘Podemos aprender com os erros e com os caminhos que eles percorrerem.’
CRONOLOGIA
JUN. 1808
Hipólito José da Costa funda, em Londres, o Correio Braziliense, considerado o primeiro jornal brasileiro. Mensal, circulou até 1822, sempre editado e impresso na Grã-Bretanha. Cada edição tinha entre 72 e 140 páginas
SET. 1808
Começa a circular a oficialista Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil
MAR. 1821
É lançado o Conciliador do Reino Unido, primeiro jornal privado brasileiro, editado por José da Silva Lisboa. Era impresso na única tipografia do Rio de Janeiro, a Imprensa Régia, da qual era um dos diretores
ABR. 1822
Cipriano José Barata de Almeida lança, em Recife, o Sentinela da Liberdade, o primeiro jornal republicano brasileiro
ABR. 1822
Começa a circular o Correio do Rio de Janeiro, editado por João Soares Lisboa, quem primeiro usou a imprensa para defender a convocação de uma Constituinte brasileira. Foi a primeira pessoa processada no Brasil por abuso da liberdade de imprensa
NOV. 1825
O tipógrafo Antônio Miranda Falcão lança, em Recife, o Diário de Pernambuco, o jornal mais antigo em circulação na América Latina
JAN. 1875
Um grupo de republicanos e abolicionistas funda o jornal A Província de São Paulo, dirigido por Francisco Rangel Pestana e Américo de Campos. Com a proclamação da República, em 1889, o jornal passa a se chamar O Estado de S.Paulo, cuja direção é assumida, em 1891, por Julio Mesquita
1897
A envergadura da campanha militar contra Antônio Conselheiro e seus seguidores, em Canudos, faz com que os principais jornais brasileiros mandem correspondentes ao sertão baiano. Entre eles estava Euclides da Cunha, pelo Estado, cujo relato seria lançado em livro com o título de Os Sertões, um clássico da literatura brasileira
OUT. 1924
Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo compra o diário carioca O Jornal, a partir do qual constituiria os Diários Associados, o primeiro conglomerado de mídia da história do Brasil
OUT. 1930
Na sequência da revolução iniciada em 3 de outubro, o presidente Washington Luís, é preso e substituído por uma junta militar. Jornais identificados com o governo são depredados em várias cidades do País
AGO. 1954
Getúlio Vargas suicida-se. Em diversas cidades, jornais identificados com a oposição ao seu governo são responsabilizados pelo fato e, em alguns casos, invadidos e depredados
FEV. 1967
O marechal Humberto Castello Branco, que assumira a Presidência com o golpe militar de 1964, assina uma nova Lei de Imprensa. Como a legislação em vigor anteriormente, o texto prevê penas de prisão para jornalistas e multa para uma longa lista de supostos crimes
ABR. 1984
Após intensa mobilização popular pelas eleições diretas, que contou com apoio dos principais jornais do País, o Congresso derruba a emenda constitucional que permitiria a escolha dos presidentes pela via democrática
OUT. 1988
Promulgada a nova Constituição Federal. A liberdade de imprensa é assegurada e vedada toda forma de censura política, ideológica ou artística
AGO. 1996
O presidente Fernando Henrique Cardoso assina a adesão formal do Brasil à Declaração de Chapultepec sobre Liberdade de Imprensa nas Américas
ABR. 2009
O Supremo Tribunal Federal (STF) revoga a vigência da Lei de Imprensa’
O Estado de S. Paulo
Entidade programa vários eventos para comemorar data
‘Para comemorar sua trajetória, a ANJ entregará na terça-feira o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa ao deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), autor da ação no STF que resultou no fim da Lei de Imprensa. Uma campanha institucional em jornais, revistas, TV e rádio também marcará a data.
Às 14h30 do mesmo dia, no Centro de Eventos e Convenções Brasil 21, haverá o painel Liberdade de Expressão e o Futuro do Jornalismo. O convidado principal é o jornalista Iason Athanasiadis, que esteve preso 20 dias no Irã, pela cobertura dos protestos contra o resultado das eleições que reconduziram Mahmoud Ahmadinejad à Presidência.’
Daniel Bramatti
Livro destaca ação de jornais na transição
‘Em A Força dos Jornais: os 30 anos da Associação Nacional de Jornais no processo de redemocratização brasileiro, Judith Brito e Ricardo Pedreira, respectivamente presidente e diretor executivo da ANJ, fazem um relato histórico da consolidação da entidade desde 1979, quando foi criada. O livro traça ainda um panorama da imprensa nos últimos anos e seus altos e baixos por conta das turbulências econômicas pelas quais o Brasil passou desde o Plano Real.
Em 17 de agosto de 1979, a criação da ANJ reuniu em torno da mesma mesa Cláudio Chagas Freitas (O Dia), João Roberto Marinho (O Globo), José Antonio do Nascimento Brito (Jornal do Brasil), Pedro Pinciroli Júnior (Folha de S.Paulo), José Maria Homem de Montes (O Estado de S.Paulo), Maurício Sirotsky e Fernando Ernesto Corrêa (Zero Hora), Francisco Antônio Caldas (Correio do Povo), Renato Simões (A Tarde), Demócrito Dummar (O Povo) e Jaime Câmara Júnior (Jornal de Brasília).
A reunião consolidava um movimento iniciado no ano anterior. Foi de Cláudio Chagas Freitas, de O Dia, então com apenas 23 anos, a iniciativa de dobrar a resistência de outros empresários. ‘Historicamente, os jornais brasileiros eram desunidos e, por razões de mercado, tendiam sempre a privilegiar o enfrentamento de seus concorrentes, em vez de buscar a defesa dos interesses comuns. A intensa rivalidade entre os títulos de uma mesma cidade ou Estado contaminava as relações pessoais dos seus proprietários e minava o pensamento associativo’, apontam Judith Brito e Ricardo Pedreira.
Entre os objetivos da entidade recém-inaugurada estavam defender ‘a democracia e a livre iniciativa’ e sustentar ‘a liberdade de expressão do pensamento, da informação e da propaganda’. Foi na Constituinte, quase dez anos depois, que a ANJ ajudou a dar forma legal a esses preceitos. ‘Ajudamos de forma muito firme a construir esse pilar da democracia que é a liberdade de expressão. (…) As Redações vieram junto com a gente, se mobilizaram de forma incrível na defesa da liberdade de expressão como uma viga da estrutura da Constituição que estava sendo construída’, disse Nascimento Brito, quarto presidente da ANJ, em depoimento aos autores do livro.
Após um período de euforia no início do Plano Real, que provocou um boom de investimentos e endividamento, os jornais entraram em crise com a desvalorização do real, em 1999. O estouro da chamada bolha da internet, logo depois, agravou o quadro. A ANJ, então presidida por Francisco Mesquita Neto, do Estado, debatia saídas, entre elas a busca de uma linha de financiamento para o setor no BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) – ideia depois abandonada – e a promoção de mudanças na lei para permitir a entrada de capital estrangeiro nos jornais.
Apesar de essa última medida ter obtido sucesso, o que prevaleceu foi a busca de refinanciamento das dívidas, jornal por jornal. Estava pavimentado o caminho para o que os autores chamam de ‘renascimento brasileiro’. Entre 2003 e 2008, a circulação dos jornais diários passou da média de 6,47 milhões de exemplares para 8,49 milhões.
A ANJ chegou a 2009 em meio a uma crise econômica e enfrentando o desafio da concorrência com as novas mídias. Mas o tom do livro é otimista: ‘O jornal nunca foi tão lido, agora que tem sua versão digital. Cabe aos jornais transpor para esses novos formatos e tecnologias o tesouro de credibilidade que conseguiram acumular ao longo dos séculos’.’
José Arthur Gianotti
Aplicação da lei e censura
‘Nenhuma regra se ajusta a seus casos sem deixar zonas de indefinição. Até mesmo a aplicação de uma lei física encontra resultados que variam num intervalo, cuja variação se determina em função do uso do resultado. O marceneiro não mede suas tábuas como o mesmo rigor de um fabricante de aparelhos óticos. O que dizer de uma norma jurídica?
É de esperar que a variação seja mais ampla. Por isso a jurisprudência desempenha papel crucial na determinação desse intervalo, pois o juiz aplica a lei tendo em vista tanto seu enunciado como a aplicação já feita por seus antecessores. Lembremos apenas o caso dos contratos leoninos. Um contrato vale pelo que foi acordado entre as partes, mas, se uma delas tiver ganhos ou perdas além de limites razoáveis, é a vontade do tribunal que estabelece o novo parâmetro.
A mídia, assim como os movimentos sociais, joga com essa ambiguidade. Sem pretender contestar o Estado de Direito, ela leva em conta a aplicação da lei em vista de seus próprios interesses, sejam interesses públicos, sejam interesses privados. A notícia sempre diz respeito a uma situação desviante, cabendo então aos interessados corrigir os exageros e encontrar os responsáveis por eles.
Até quando um jornal deve publicar uma notícia que fere a imagem de um cidadão? Além do mais, se este for um político, isto é, um homem público, a publicação da notícia não pode inviabilizar sua própria identidade política, destruindo assim sua carreira?
Cada categoria assume seus próprios riscos nessa negociação com a lei. O cidadão comum pode achar que tal despesa com sua saúde pode ser descontada de seu imposto de renda, a Receita Federal pode simplesmente glosá-la. Um grupo de sem-terra se arrisca invadindo uma propriedade que considera improdutiva, poderá ser desalojado legalmente e pagar o preço político de sua ação. Mas não existiria como movimento se não forçasse os limites da lei para fazer com que ela se incline na direção desejada por sua ideologia e seus interesses.
O mesmo se dá, mutatis mutandis, com a mídia. Ela não existiria se apenas informasse casos constatados e julgados. Um jornal não se confunde com um boletim científico ou um jornal oficial. Obtida uma informação interessante, cabe ao jornal publicá-la; obviamente assumindo os riscos se ela for exagerada, se informar além do intervalo aceito pelos costumes e pela jurisprudência.
Este jogo entre as regras e seus casos depende assim da estabilidade, flexibilidade e prontidão das instituições. Uma notícia veiculada por um jornal tradicional e carrancudo não tem a mesma importância, não possui o mesmo sentido público, quando vem a ser publicada por um tabloide especializado em escândalos. E os dois tipos de jornais existem segundo as tradições regionais. O grau de tolerância para o inusual e intempestivo varia de país a país..
Isto significa que cada país tem a imprensa que merece, vale dizer, aquela que opera num nível de indefinição que o jogo político da população conseguiu definir. Não se segue daí qualquer conformismo. Um país é também aquilo que ele quer ser. Não existe como coisa, mas como rede de instituições que valem conforme a liberdade que logram prometer, o espaço público que consegue abrir. Já que todos possuem uma esfera pública, é nela que um país comprova o que ele vem a ser.
Desse ponto de vista, o Brasil vive uma indefinição que pode nos jogar ladeira abaixo. Não se travam entre nós tensões vigorosas entre o público e o privado; pelo contrário, desde os tempos em que se falava da lei de Gerson – que cada um cuide do seu – cada dia mais os homens públicos, sejam eles professores, políticos e juízes, deixam transparecer sem pejo o caráter privado de suas ações. O público somente se performa no interesse privado.
Nossa situação se torna mais trágica quando as próprias normas institucionais passam a servir a tais interesses. O decreto do Senado vira secreto; a falta de decoro parlamentar deixa de ser transgressão a ser examinada pela Casa para se resumir tão-só num instrumento de pressão política; o presidente da República se lança numa campanha eleitoral como se estivesse dando publicidade a seus atos de governo e assim por diante. O caso do Judiciário é patético. Os casos não são decididos com devida precisão e isenção, mas se arrastam de tal maneira que enervam os direitos dos litigantes. E magistrados politicamente corretos ou incorretos usam o emperramento das leis para prestarem serviços a seus amigos ou a companheiros ideológicos.
Por exemplo, o Estado está proibido de divulgar reportagens sobre Fernando Sarney, que, se sentido prejudicado, conseguiu na Justiça esse impedimento. Não vejo censura do ponto de vista legal, o demandante se viu prejudicado em seus direitos e apelou para a Justiça. Mas a censura de fato se instala quando o recurso demora a ser aceito e demora ainda mais para ser julgado.
Muito bem. Suponhamos que a Justiça decida e mantenha a proibição. Permanece a informação sobre transgressões presumidas. Ora, essa presunção ainda é notícia e deve ser publicada pelo jornal. Não como um fato ocorrido – isto o Estado está proibido de dizer -, mas como presunção, como um caso a ser verificado. Quando um processo corre em segredo de justiça, ele deixa de ser secreto se a notícia vaza, e cabe então ao Poder Judiciário punir o responsável por esse vazamento. O jornal deixaria de cumprir sua função pública se esperasse o julgamento de fato, que, aliás, somente se fará de forma equilibrada sob pressão da opinião pública. A Justiça se tece nesse jogo, mas, como tudo parece indicar, ela está servindo tão-só aos interesses privados.
*José Arthur Gianotti é filósofo’
Ruth Costas
Crime organizado também ameaça jornalistas
‘Além das pressões por motivos políticos, outra ameaça ao trabalho dos jornalistas na América Latina é o narcotráfico. Só no México, nos últimos 18 meses, 17 jornalistas foram assassinados pelo crime organizado, segundo a Fundación Manuel Buendía, do México. No Brasil, entre os casos emblemáticos estão o assassinato do jornalista Tim Lopes, no Rio, em 2002, e as agressões contra uma equipe do jornal ?O Dia?, que fazia uma reportagem na favela do Batan, também no Rio, no ano passado.’
PRESIDENTE
Roldão Arruda
Livro analisa 1.554 discursos de Lula
‘O Brasil já teve presidentes que detestavam falar em público. O general Emílio Garrastazu Médici, que comandou a nação entre 1969 e 1974, foi um. ‘Presidiu o País em silêncio, lendo discursos escritos pelos outros’, anotou a seu respeito o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai na direção oposta. Ele discursa, dá entrevistas e fala no rádio com tanta voracidade que tem chance de acabar o seu governo dizendo que ‘nunca antes neste país alguém discursou tanto…’
Todas essas falas presidenciais constituíram a matéria-prima do jornalista Ali Kamel na realização do livro Dicionário Lula – Um Presidente Exposto Por Suas Palavras (Editora Nova Fronteira), que está chegando às livrarias. É uma iniciativa ousada e bem executada de se definir o que realmente pensa o primeiro mandatário, a partir do que diz. O livro põe abaixo ideias preconceituosas, confirma com fartura de informações coisas que alguns acadêmicos já sabiam e, sobretudo, expõe o homem de corpo inteiro, com suas contradições, crenças, estratégias políticas.
Kamel, que é diretor da Central Globo de Jornalismo, utilizou apenas as falas de improviso do presidente – nos períodos de janeiro de 2003 a maio de 2008 e de setembro de 2008 a março de 2009. Renderam um cartapácio de 1.554 textos, que ele triturou e classificou, garimpando os termos mais significativos e recorrentes da retórica lulista. Assim surgiu o dicionário do título – uma obra de referência, com 354 verbetes, de ?aborto? a ?vontade?, passando por ?elite?, ?José Serra?, ?mensalão?, ?meio ambiente? e outros.
O leitor deseja saber como vê a imprensa? O verbete a respeito reúne trechos de treze discursos e entrevistas sobre o assunto. É um caso típico de desassossego, ou, como diz Kamel, ‘um caso de amor aparente e mágoa mal resolvida’. O presidente elogia aqui e ali, mas sempre acrescenta um senão. ‘Eu não brigo com a imprensa, eles brigam comigo’, disse no Paraná, em 2007. ‘A imprensa não publica aplausos, só vaias’, resmungou para um jornalista português, um ano depois.
Se o leitor pular do verbete ?imprensa? para ?Congresso? e ?Judiciário?, verificará um processo semelhante. Lula diz que são indispensáveis para a democracia, mas quase sempre acrescenta um senão. O Congresso, por exemplo, errou ao cassar o mandato de seu amigo José Dirceu, ‘sem ter provado alguma coisa contra ele’.
O verbete mais alentado é o que fala de Lula. Não pela preferência de Kamel, mas porque Lula adora falar dele mesmo. São 25 páginas, uma mini autobiografia, na qual reluzem as passagens da infância pobre e da vida operária. O presidente tem noção clara da importância de sua história – improvável história de um menino miserável que se torna presidente – para aproximar e estimular as pessoas e consolidar sua imagem. Em 2006, diante da elite econômica do planeta, em Davos, declarou: ‘Sou de uma terra onde, se as pessoas não morrem até completar um ano de idade, já é um milagre. E eu não morri, cheguei a presidente.’
PREDESTINADO
O dicionário é antecedido por um texto com a análise do material recolhido. Kamel chama a atenção para o sentimento de predestinação que inunda o presidente – como se o fato de ser o primeiro operário a morar no Planalto já fosse suficiente para tornar seu governo melhor. Daí o excesso de expressões como ?nunca antes na história?, ?desde Cabral?, ?desde a Proclamação da República?. No conjunto de 1.554 textos, Lula recorre a esses bordões em 880.
Kamel também investiga se há coerência nas falas de Lula. Constata que é coerente em alguns casos; e incoerente na maioria das vezes. Exemplo de coerência é a insistência em dizer que seu governo cuida dos pobres. De cada dez discursos, seis contêm referências ao combate à pobreza.
Mas é incoerente na definição de políticas sociais.. No início do governo, criticou seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, por distribuir dinheiro aos pobres por meio de vales, como o auxílio para o gás e o Bolsa-Escola. Isso acomoda as pessoas, desestimula os pequenos lavradores a plantar, dizia Lula em 2003. ‘Tem gente que não quer mais isso (plantar) porque prefere ficar esperando o vale isso, o vale aquilo.’
Passados sete meses, criou o Bolsa-Família, ampliando a transferência de renda. Mas isso não acomoda as pessoas? ‘Não, pelo contrário. O acesso às necessidades básicas aumenta a autoestima’, dizia o mesmo Lula em 2007.
O homem que emerge da análise de Kamel é um brasileiro médio, mais ou menos crente em Deus, que adora falar da mãe, exaltando o modelo tradicional de família’. Seu discurso político é fluido, conciliador e pragmático. Acredita que seu papel é ajudar o operariado a satisfazer as três coisas com que sonha na vida.
E quais são elas? ‘Uma casa, casar com uma mulher bonita e ter um bom carro’, como definiu em discurso diante de operários da Ford, em 2007. Alguém consegue ver nessa afirmação um político de esquerda, interessado na luta de classes, como já tentaram retratá-lo?
O autor sabe que sua análise não é definitiva – e que a melhor parte virá quando os discursos de Lula puderem ser cotejados com os resultados de seu governo. Seu livro, porém, constitui uma agradável surpresa na área da análise política.
Lula não é o primeiro governante a se apresentar como predestinado (Jânio Quadros subiu como foguete na vida político fazendo isso), nem o primeiro pai dos pobres (Getúlio Vargas ainda ocupa o primeiro lugar no panteão). Ele é imbatível, porém, no campo da linguagem. Kamel mostra que o ex-menino pobre sabe usar como ninguém a linguagem das ruas – com metáforas simples e vocabulário de fácil compreensão – para falar com os brasileiros. Nunca, jamais na história, houve presidente que falasse de modo tão popular como ele.’
POLÍTICA
O Estado de S. Paulo
A trajetória de Obama nas páginas de um jornal
‘Obama – A Jornada Histórica
New York Times
Amarilys
240 págs., R$ 79
Publicado pelo jornal The New York Times, Obama – A Jornada Histórica é um relato sobre a trajetória do atual presidente dos EUA, da infância à posse como 44º ocupante da Casa Branca. O volume reúne vasto material fotográfico e analítico produzido pelos colaboradores e jornalistas do NYT. Entre as fotografias estão aquelas que renderam a Damon Winter o prêmio Pulitzer na categoria, em 2009. Trabalhos dos ilustradores também aparecem no livro, que traz textos dos colunistas David Brooks, Gail Collins, Maureen Dowd, Paul Krugman e Thomas L. Friedman. Os principais discursos de Obama são apresentados na íntegra. A tradução é de Ana Ban, Marisa Motta e Vivian Mannheimer.’
EUCLIDES DA CUNHA
Francisco Foot Hardman
Biografia escrita por brasilianista já nasce clássica
‘Morto há 100 anos, exatamente a 15 de agosto de 1909, o célebre autor de Os Sertões é tema de uma nova biografia, que chegará às livrarias no início de setembro – Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos, de Frederic Amory (Ateliê Editorial). Trata-se de um livro que já nasceu clássico. Primeiro, porque escrito por um brasilianista e euclidianista que frequentou profundamente os estudos da história, cultura e literatura do Brasil por quase 60 anos. Segundo, porque escrito num estilo equidistante tanto da cena narrada quanto das fontes da pesquisa, escorreito na forma e ponderado nos juízos críticos, sem prejuízo da interpretação pessoal de alguém que conheceu intimamente toda a obra do biografado. E mais: de alguém que dialogou com todas as biografias disponíveis de Euclides, do estudo pioneiro abrangente de Francisco Venancio Filho (1940) ao ensaio inconcluso de Roberto Ventura (2003), dos trabalhos de Elói Pontes (1938), Sylvio Rabello (1946), aos estudos mais temáticos e fundamentais de Olympio de Souza Andrade (1960) e de Leandro Tocantins (1968). Traça com todos esses antecessores interlocução permanente. O autor não é, pois, um novato, nem arroga qualquer autoproeminência. Fala sempre ancorado em textos, sejam os documentos, sejam os intérpretes que lhe antecedem. Por isso, sua narrativa sai com essa cara de vinho bem envelhecido. Os leitores têm só a ganhar, em sabor, mas igualmente em rigor.
Quando Frederic Amory faleceu, em janeiro passado, em Berkeley, cidade que esse bostoniano liberal radical adotara há pelo menos quatro décadas como morada, por conta de seu trabalho como professor de literatura medieval inglesa e especialista reconhecido em literaturas nórdicas (Islândia e Noruega) na Universidade de São Francisco, nós, seus amigos, repentinamente separados dessa alma que sabia se mostrar, sempre, tão generosa em sua altivez de aristocrata do espírito, pensamos: será que se repetirá, ainda uma vez, a ‘maldição’ dos biógrafos de Euclides, relembrada anedoticamente por outro pranteado amigo – Roberto Ventura -, ali mesmo, em São José do Rio Pardo, na Semana Euclidiana de 2002, na terceira noite anterior à sua morte? Roberto referia-se ao caso de Luiz Vianna Filho, que não teria levado a termo projeto de biografia euclidiana, depois de ter escrito as de Machado de Assis e Rui Barbosa. Pensava também em Olympio de Souza Andrade, que deixara inédito o interessantíssimo ensaio Euclides da Cunha Depois de Os Sertões, até hoje a reclamar a devida publicação, como justo prolongamento e desfecho dessa obra-prima que é seu História e Interpretação de Os Sertões..
Mas, não. Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos estava pronta. E foi assim, como lembra o colega e amigo Leopoldo Bernucci no prefácio. Velho e doente há anos, Fred Amory sobreviveu, como tantos outros autores, apenas o bastante para concluir seu projeto de uma escrita que era uma vida. E nos deu um primor de narrativa e um trabalho no fôlego mais distendido da melhor tradição acadêmica, livro que passa a integrar, com destaque, qualquer estante de estudos brasileiros e euclidianistas, qualquer seção de ‘como se fazer uma boa biografia’.
E se você, leitora, leitor, que tiveram paciência de me seguir até aqui, disserem, de chofre, ‘dê-me pelo menos três razões para adquirir e ler o livro de Amory’, eu lhas darei. Ficarei com três, já que não posso, pelo tempo e pelo espaço, dar dez. Primeira razão: no rastro de alguns dos biógrafos old generation, Fred foi obsessivo, ambicioso: leu exaustivamente o conjunto da obra de Euclides e também sua fortuna crítica gigantesca, que só emparelha em extensão, na literatura brasileira, com a de Machado, atualizada até recentemente, com o boom notável de novas contribuições nessas duas décadas. Nasce daí uma visão abrangente e compreensiva do conjunto da obra e das principais linhas de interpretação. Basta dizer que, para além dos livros de Euclides, Amory debruçou-se sobre toda a sua ensaística jornalística dispersa e também sobre muita da poesia inédita, pois foi nosso companheiro de viagem, de Bernucci e meu, no projeto da Poesia Reunida.
Segunda razão: movido por febre intelectual autêntica, isto é, alheia aos rituais burocráticos do ramerrão universitário, e por paixão permanente pelo Brasil, por suas histórias e culturas, Fred acumulou um saber admirável e próprio de grande brasilianista. Seu biografado não paira como mais um daqueles personagens da série ‘meu tipo inesquecível’, como sensação excêntrica, mas como homem de seu tempo, como cientista e artista atravessado pelas contradições da época. Estamos diante de uma biografia intelectual no melhor sentido da expressão. Ao perseguir as trilhas do grande escritor, depara-se com o mundo e o Brasil em transformação, nas complexas passagens do Oitocentos ao Novecentos.
Terceira razão: Amory, visitante regular do País desde o início da década de 50, aqui conheceu Rosaura Escobar, uma das filhas de Francisco Escobar, talvez o maior amigo e principal correspondente de Euclides. Ingressou assim cedo no círculo do movimento euclidiano, participando desde logo das Semanas mitológicas em São José do Rio Pardo. Daí abriu-se um universo. Interagiu com Olímpio de Souza Andrade, Guilhermino César, Oswaldo Galotti, José Bicalho Tostes. Aproximou-se, ao longo do tempo, da memória de Euclides pelo lado pessoal, familiar, psicológico. Mas sua condição de estrangeiro preservou a distância e equilíbrio adequados.
Como nota em suas Observações Finais, citando Lord Acton, Fred aceitou o desafio de ‘julgar o melhor do talento e o pior do caráter’, mas sem cair na tentação de buscar ‘unidade artística no caráter’. No tumulto da vida, não há coerência. Por isso, ao contrário da busca da ‘linha reta’, lembra-nos dos ‘desvios visionários’ de Euclides em suas noites amazônicas. Linhas sinuosas, sem lógica, como aquele traçado tão irregular do rio Purus na Carta que desenhou com afinco na grande viagem e que Amory, com sensibilidade, escolheu para encerrar essa sua tão bela narrativa.
E se ainda assim você permanece incrédula(o), e insiste ‘poderia um scholar de antigas sagas islandesas e norueguesas tratar tão bem de uma epopeia brasileira, tanto a obra quanto a vida de seu autor?’. Responderei: sim, perfeitamente. Pois na imperfeição das humanidades vividas nesses extremos geográficos e históricos, confluem, nas periferias do círculo polar ártico e do trópico semiárido ou úmido, as escritas sem fim de homens em luta com a terra e entre si. Fred, esse raro amigo, que rotulou seu arquivo de recortes, cartas e fotocópias mais valioso de ‘Meu Brasil’, sabia, como poucos de nós, os segredos dessa ‘solidão em sociedade’ que fez de Euclides da Cunha um de nossos últimos românticos.
Porque tinha, como escriba, a dose certa de desprendimento própria da melhor vocação de pioneer, de explorador de qualquer vastidão, de qualquer Oeste. E nos legou esse belo ensaio biográfico, que certamente ficará. Ainda o vejo brilhar, em nossas gastronomias de Berkeley, com seu humor cáustico, sua curiosidade infantil, seu abraço acolhedor. Se é duro demais perder um amigo, é feliz o dia de celebrá-lo, em meio ao centenário da morte de Euclides, com essa odisseia, que viverá dos sopros da memória, da vida inteligente que lhe cruze os caminhos e, também, de um e outro sobressalto no coração.
Francisco Foot Hardman é professor titular do programa de teoria e história literária da Unicamp e autor, entre outros, de A Vingança da Hileia:
Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna (Ed. Unesp)
O Ano de Euclides
No próximo domingo, o Estado publica um caderno especial dedicado à cobertura do colóquio Euclides da Cunha 360º – A Obra e o Legado de um Intérprete do Brasil, realizado na última sexta-feira no auditório do jornal. O evento reuniu os professores Walnice Nogueira Galvão e Lilia Moritz Schwarcz (USP), Luiz Costa Lima (PUC-Rio), Francisco Foot Hardman (Unicamp), Leopoldo Bernucci (Universidade da Califórnia) e José Leonardo do Nascimento (Unesp), a socióloga e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Nísia Lima, o escritor e colunista do Estado Milton Hatoum e o diretor, ator, dramaturgo e fundador do Teatro Oficina José Celso Martinez Corrêa para discutir a perenidade da produção intelectual do autor de Os Sertões. Os debates foram mais uma etapa do Ano de Euclides, projeto jornalístico, cultural e multimídia do Grupo Estado com o objetivo de homenagear a passagem do centésimo aniversário de morte do escritor. Entre as iniciativas de destaque está a seção Euclides no Estadão, que se encerra hoje, com artigos publicados pelo autor no jornal comentados por Walnice Nogueira Galvão (leia na última página). Todo conteúdo da seção pode ser lido no Portal Estadão, em página especial que contempla ainda outras ações do Ano de Euclides. Consulte: www.estadao.com.br/pages/especiais/euclides/.’
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