É briga de cachorro grande, mas, com pelo menos 47 anos nas costas tomando cerveja nas noites de sexta-feira, acho que hoje tenho o direito de opinar a respeito. Refiro-me ao artigo intitulado ‘A cerveja: bebendo gato por lebre’, do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, publicado dia 18 de dezembro último na seção ‘Tendências/Debates’ da Folha de S.Paulo. Anteontem, na mesma página, o respeitado físico, de 78 anos, voltou a se referir ao tema, desta vez respondendo a artigo assinado por Sílvio Luiz Reichert, publicado dia 30 de dezembro, sob o título ‘A cerveja e o orgulho de quem faz o melhor’.
Para quem não sabe, Cerqueira Leite é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo. E Reichert? ‘Químico, mestre cervejeiro pela Doemens Fachakademie, da Alemanha, é vice-presidente de Inovação e Desenvolvimento Tecnológico da Anheuser-Busch Inbev’, conforme identificação feita pelo jornal, no fim do seu artigo. Faltou dizer que a Anheuser-Busch Inbev é a dona da Ambev. Mais dados aqui. A AB-Inbev, com sede em Leuven, na Bélgica, é a maior companhia cervejeira do mundo, com 120 mil empregados em 25 países. No Brasil, tem 23 fábricas e sua participação no mercado cervejeiro é de 67,5%, segundo o ‘site’ da AB-Inbev.
‘Apenas cevada, lúpulo e água’
Feitas as apresentações, vamos ao que denunciou Cerqueira Leite, em seu primeiro artigo:
‘Quando Brahma e Antarctica se fundiram, contrariando a legislação que impede a formação de monopólios privados no país, argumentaram que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado, `mas depois foram gostosamente absorvidas por uma multinacional do ramo, certamente uma forma sutil de realizar a concorrência prometida. E não foi tomada nenhuma providência´.
O Brasil produz entre 200 mil e 250 mil toneladas de cevada por ano, das quais entre 60% e 80% são aproveitados pela indústria cervejeira. Essa produção tem sido suplementada por importação de quantidade equivalente. Essa indústria consome cerca de 400 mil toneladas de cevada. O índice de conversão entre a cevada e o álcool é, em média, de 220 litros por tonelada. As cervejas brasileiras têm teor de álcool de 5%. Assim, seriam necessárias pelo menos 2,4 milhões de toneladas de cevada por ano.
Feitos os cálculos, o álcool proveniente da cevada na cerveja brasileira representa cerca de 15% do total. E de onde vem o restante? Do milho. E o índice de conversão de grão em álcool para o milho é 80% maior que para a cevada. Resumindo, o milho responde por quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira, `revelando sua vocação para homogeneização e crescente vulgaridade´.
Tudo bem, não fosse um detalhe: `Segundo norma autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta única e exclusivamente por apenas três elementos, cevada, lúpulo e água, tendo como interveniente um fermento. Tradicionalmente, o termo malte designa única e precisamente a cevada germinada´.’
Nível de desinformação e patamar de excelência
Acrescenta o físico que a malandragem começa aqui: com frequência, lê-se em rótulos de cervejas a expressão ‘cereais maltados’, ou simplesmente ‘malte’, dissimulando assim a natureza do ingrediente principal na composição da bebida. Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira pode optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.
E acrescenta Cerqueira Leite:
‘Outro determinante da baixa qualidade da cerveja brasileira é a adição de aditivos químicos para a conservação. O mal não está só nessa condição, mas na sua necessidade. O lúpulo em cervejas de qualidade, sejam lagers, sejam ales, é o componente responsável pela conservação – além, obviamente, de suas qualidades de paladar. Depreende-se daí que os concentrados de lúpulo usados na cerveja brasileira são de baixa qualidade. O que é inexplicável e de lamentar, entretanto, é que as autoridades brasileiras, tão zelosas para com alimentos corriqueiros, sejam tão omissas quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo e permitam que o cidadão brasileiro beba gato por lebre.’
E o que disse o cervejeiro da Inbev? Principais trechos:
‘A indústria nacional de cerveja possui tradição de mais de cem anos e tem orgulho de produzir bebidas de altíssima qualidade.
As grandes cervejarias obedecem à legislação brasileira, que determina que a porcentagem de malte (cevada submetida a processo controlado de germinação) contido no extrato que dá origem à bebida não pode ser menor do que 55%.
Mais malte ou menos malte na cerveja é antes de tudo uma opção do mestre cervejeiro na formulação de seu produto. Em algumas marcas de grande penetração no nosso mercado, esse percentual chega a 100%. Trata-se de opção técnica, cujo único objetivo é justamente produzir um produto de acordo com a preferência do consumidor, nunca enganá-lo.
(As marcas importadas) ocupam uma faixa inexpressiva do mercado, por um motivo muito simples: a imensa maioria prefere a cerveja brasileira.
A cevada tem rendimento de 67% na composição do extrato originário da cerveja, enquanto o milho atinge apenas 56% de rendimento.
As cervejarias brasileiras de primeira linha não usam conservante por dois motivos: primeiro, porque é ilegal, trata-se de prática vetada pela legislação; segundo, porque totalmente desnecessário, já que a conservação da cerveja de boa qualidade é garantida pelo seu próprio processo de fabricação.
Esse nível de desinformação se choca frontalmente com o patamar de excelência em que se encontra a indústria brasileira de cerveja.’
Não seria o caso de uma investigação?
Para quem gosta de assistir a uma boa briga, o melhor está na resposta do físico, publicada nesta quinta-feira (14/01). A começar pelos adjetivos com que qualifica o homem da Inbev: ‘echadiço’, ‘trombeta’, ‘intelectualmente apoucado’, ‘sofista’, ‘buzina’, ‘passavante’, ‘sarabatana’, ‘estafeta’, ‘recadista’. Um bom aperitivo, mas paro aí, pois deve-se ler o artigo completo e não há espaço aqui para reproduzi-lo. Para quem não é leitor da Folha, é possível lê-lo, entre outros endereços da internet, aqui.
Aliás, a briga não chegou ainda, de fato, à internet. Na tarde desta sexta-feira, fazendo busca no Google com as palavras-chave ‘cerveja, Cerqueira Leite, Ambev, Reichert’, só encontrei 34 citações. Mas o artigo do físico repercutiu na Ambev. Hoje (16/01), na seção de cartas da Folha, o diretor de Comunicação da Ambev, Alexandre Loures, informou que solicitara a Reichert, ‘um dos mais renomados mestres cervejeiros do mundo’, que respondesse aos argumentos do primeiro artigo de Cerqueira Leite.
E concluiu:
‘Diante da solidez dos argumentos apresentados por Reichert, o senhor Leite preferiu desqualificá-lo, utilizando adjetivos chulos. A AmBev emprega 23 mil funcionários e é um dos maiores pagadores de impostos da iniciativa privada brasileira. Merecemos respeito e estamos profundamente ofendidos com a forma vulgar como fomos atacados. O sucesso dos nossos produtos junto aos consumidores é a melhor resposta que podemos oferecer ao destempero do senhor Leite.’
Chulos? E eu que já havia anotado os elegantes adjetivos de Cerqueira Leite, para um possível uso futuro?
No começo do Plano Real, comprava-se uma lata de cerveja por 35 centavos. Pouca coisa se valorizou tanto no Brasil, nos últimos anos. Achamos que respeito é o que merecem os consumidores de cerveja no Brasil e que os imensos impostos pagos e as enormes verbas publicitárias da Ambev não impeçam governo e imprensa de exigir esse respeito.
Esperamos que essa briga de cachorro grande não pare aí. O leitor Mário Pereira, na mesma página da Folha, parece concordar com isso, quando indaga: ‘Não seria o caso, dada a gravidade do assunto, de o Ministério Público abrir uma investigação? Ou vai ficar por isso mesmo?’
******
Jornalista, Belo Horizonte, MG