Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Canudos e o fanatismo do gado bolsonarista

(Foto: Imagem de Robert Owen-Wahl por Pixabay)

Seria exagero ver nas últimas demonstrações de fanatismo dos bolsonaristas semelhanças com os seguidores de Antônio Conselheiro, descritos originalmente em “Os Sertões” por Euclides da Cunha e relembrados, mais tarde, em “A Guerra do Fim do Mundo”, por Mario Vargas Llosa?

Nem um, nem outro usaram a expressão, hoje empregada, de “gado”, mas descrevem um mesmo comportamento irracional, bruto, selvagem, de seres primários sem consciência de identidade, dispostos a seguirem como bestas do mato, sem razão e sem inteligência, seu líder. Felizmente, ainda existe uma diferença básica, a não transformação desses grupos de maioria evangélica num foco de resistência armada.

Ou teria sido a falta de diplomacia dos dirigentes da então recente república, no século XIX, quem ateou fogo naqueles religiosos, ao tentar desmobilizá-los com o envio de tropas militares? Imaginem se os atuais bloqueios e concentrações diante dos quartéis tivessem sido dispersados à força. Por certo teria havido resistência. Não seria essa a razão do silêncio do presidente Bolsonaro: a expectativa de que ocorra um incidente capaz de incendiar essas manifestações grotescas de pessoas acampadas diante de muros, rezando, orando, gritando, exigindo uma intervenção divina em favor de um golpe militar e da anulação das eleições?

É verdade, não há um líder como Antônio Conselheiro contando histórias malucas capazes de fazer esquecer a miséria, arrastando as pessoas a agirem como desprovidas de sanidade mental. Mas existem outros tantos conselheiros vivos nos celulares e computadores, distorcendo a realidade em nome do mito maior, o presidente derrotado, segundo eles, em fraudes invisíveis perpetradas por seres sobrenaturais representantes das trevas comunistas.

Sem medo do ridículo, uma pastora profetiza, seguida por centenas de milhares de ovelhas, e testemunha sua fé inabalável em que anjos ou discos voadores impedirão a posse de Lula em janeiro. E os comentários fluem sem parar dando glória a Deus e exclamando aleluias. Não são mensagens enviadas por excitados moradores de hospícios. São também pronunciadas em igrejas e congregações repletas, como se nesses lugares todos tivessem virado loucos.

Alguns internautas, na contracorrente, chegaram a elaborar um repertório desses casos de loucura, ignorância, desespero e fanatismo mais comuns, com orações aos gritos, malucos vestidos com a bandeira brasileira marchando, prestando continência como se estivessem em pleno exercício de ordem unida no quartel. Mulheres que gritam em crise de histeria contra Lula, outras clamando em favor de uma intervenção divina diante de uma tempestade de vento e chuva que desmonta barracas, arrasta pelo chão e molha colchões, cobertores e alimentos, enquanto Deus permanece insensível.

Conselheiro era contra a República, que acabara de ser proclamada, e queria a restauração da monarquia, enquanto predizia um próximo fim do mundo, para o ano 1900, com a criação de uma Nova Jerusalém. E seus seguidores, gente simples, sofrida e sem instrução, na maioria analfabetos, acreditavam e estavam dispostas a matar e ou morrer pelo Conselheiro. O governo republicano levou três anos para acabar com o foco de extremistas, precursores dos atuais evangélicos. Foi truculento, pois temia que a erva daninha se alastrasse, num país sem cultura, vivendo seus primeiros anos republicanos de democracia.

Estranhas coincidências: os bolsonaristas são contra a democracia, pedem um golpe e predizem um próximo Apocalipse com a volta de Cristo -ou seria a volta de Bolsonaro? Uma tendência ao messianismo herdado dos colonizadores portugueses, para os quais o rei dom Sebastião, desaparecido numa batalha no Marrocos, no século XVI, retornaria para salvar os portugueses da miséria. Ao que parece, Bolsonaro acredita nos adivinhadores messiânicos segundo os quais Deus – embora santo, justo e bom – usará de uma doença, de um acidente ou de um raio divino para impedir a posse de Lula no primeiro de janeiro.

Ou será, que na falta de um gesto desfechado dos céus, os seguidores do Messias Bolsonaro se sentirão obrigados a tomarem, eles próprios, a iniciativa de provocar uma versão verde-amarela do atentado trumpista norte-americano do Capitólio, tentando impedir a posse legal e oficial de Lula? Será que chegaremos a esse absurdo? Para evitar a transformação da Praça dos Três Poderes (onde Janja gostaria de promover uma festa popular), numa versão guerreira de Canudos, será necessário se deslocar a cerimônia da posse de Lula para outro lugar mais seguro e protegido por tropas militares bem equipadas, inclusive com armamento pesado, para fazer face aos malucos? Malucos incitados direta ou indiretamente, por militares, políticos, pastores evangélicos, comentaristas de rádios bolsonaristas, canais no Youtube e redes sociais especializadas em fake news, a pretexto – numa afronta à democracia – de que não foi ainda dada aos derrotados uma explicação satisfatória sobre o resultado das eleições.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.