Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desgraça pouca é bobagem

Quem assiste TV não conhece o Brasil. Como diriam Aldir Blanc e Maurício Tapajós, ‘o Brazil não conhece o Brasil’ porque simplesmente ‘o Brazil nunca foi ao Brasil’. E o que é pior, ‘o Brazil está matando o Brasil’. Vale lembrar ainda, conforme Caetano e Gil, que ‘o Haiti é aqui’. No entanto, no noticiário da TV e nas revistas eletrônicas globais, só existe um lugar miserável, só há sofrimento em um lugar: no Haiti. E este Haiti não é aqui. E o governo Lula também acredita nisto. Há dinheiro de sobra para mandar para os haitianos, mas nada é possível fazer para acabar com as mortes, desabamentos, desastres lastimáveis com mortes lamentáveis de crianças, jovens, adultos e idosos em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais desde o Natal, passando pelo Ano Novo e entrando pelo Carnaval.

A maior cidade da América do Sul anda debaixo de água por falta de condições do sistema de captação pluvial que a cada chuvinha deixa a população – mais de 18 milhões de habitantes – totalmente apavorada. Mas o governo não investe na reestruturação e urbanização de São Paulo. Prefere exibir-se ao mundo mandando milhões de dólares para atender os miseráveis haitianos e sensibilizar os aparvalhados governantes do mundo contemporâneo quanto à importância do Brasil, um país onde não há miséria, mas tem Carnaval e muita gente que morre de inanição, de doenças extinguidas da quase totalidade das nações em desenvolvimento (ou seja, os mais privilegiados do Terceiro Mundo).

O problema é que além de santo de casa não fazer milagre, a miséria do brasileiro não dá Ibope. Por isso a TV brasileira investe tanto em explorar a desgraça do Haiti. Mas o Haiti também é aqui, só que o Brazil não conhece o Brasil. E é este Brazil que está matando o Brasil.

A glória dos mínimos

Enquanto a TV gasta todo discurso e imagens para explorar a tragédia dos haitianos e mostrar parvos brasileiros à espera de criancinhas haitianas órfãs para serem adotadas enquanto as nossas superpovoam as sinaleiras, as praças e ruas de todas as cidades do longo território nacional e aos seus apelos de ‘tio/tia, me dá dez centavos’ obtêm como resposta, além da indiferença, o levantar dos vidros das janelas dos automóveis. Fechamos a janela porque o coração já está fechado e porque esta mesma TV que tenta nos fazer chorar e ser solidários com o Haiti impõe-nos que nossas crianças são adotadas pelo tráfico. E nós não fazemos nada. Porque o Brazil não conhece o Brasil, porque o Brazil, de carro, nunca foi ao Brasil. Porque aqui, na terra de Lula, enquanto há uma tragédia no Haiti, nós temos Jurerê Internacional, onde o aluguel de uma mansão para o período de carnaval custa no mínimo R$ 10 mil (dez mil reais) por dia. Logo depois de mostrar ao parvo, entristecido e sensibilizado telespectador global a tristeza do haitiano, o Fantástico apresenta o paraíso reconquistado: Jurerê.

A miséria cotidiana do brasileiro, as tragédias de Angra dos Reis e de São Luiz do Paraitinga (no Vale do Paraíba paulista e a única cidade de São Paulo que mantinha preservado e em bom estado um conjunto arquitetônico de construções do século 19, agora totalmente destruído), dois exemplos só para ilustrar, são coisas pequenas que não contribuem para render a narrativa midiática e política. Não dá Ibope nem visibilidade. A miséria doméstica não atrai holofotes. O que vende aqui neste Haiti chamado Brasil é a riqueza dos poucos, a glória dos mínimos, dos que vivem no paraíso e possuem investimentos em outros paraísos fiscais. O miserável brasileiro se locupleta com a riqueza dos lulinhas e dos quarenta ladrões aos quais a TV tece loas e o telespectador sonha em um dia poder fazer o mesmo. Porque honestidade neste país é tão rara que quem cai no golpe do cheque e do bilhete premiado o faz sob a perspectiva de que está lesando o otário que no final é ele próprio.

É verdade, parafraseando Gregório de Mattos, triste Brasil! Este Brasil que ‘não merece o Brasil’. Plim plim!

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Jornalista, escritor, professor universitário e coordenador do curso de Jornalismo da Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA