Paula: Não é hora de subir no muro, ser imparcial.
Marcos: A verdade é sempre a melhor escolha.
Paula: Não é. Um médico dizer a um paciente em estado grave que ele provavelmente vai morrer pode acelerar sua morte, uma mentira delicada pode lhe dar forças para viver. Um bombeiro gritar: “fogo”! pode causar pânico e mais mortes.
Marcos: A função do médico e do bombeiro é salvar vidas, a do jornalista é de dizer a verdade.
“Dizer a verdade”. Acredito que todo jornalista persegue esse compromisso ético, ainda com mais vigor em tempos de sequestro de realidade. Porém, caro e cara jornalista – e espero que leia como afeto e ternura –, ainda creio que exista certa confusão de sentidos sobre o que seria dizer a verdade em seu ofício. Assim como o personagem Marcos, em peça escrita por Guel Arraes e Jorge Furtado, parece-me que o pronunciamento da verdade no jornalismo moderno e profissional está intrinsecamente ligado a uma postura de imparcialidade e de neutralidade, princípios esses que normatizam todo manual do ofício jornalístico, desde a formação até as redações dos grandes jornais brasileiros.
Contudo, estimado e estimada jornalista, gostaria de lançar aqui algumas provocações: De onde provém uma verdade que não toma partido em época de recrudescimento das ameaças e das perseguições não só ao próprio jornalismo como à própria normalidade democrática? De que verdade estamos tratando quando ainda se vacila em posicionar-se abertamente contra a exacerbação diária da necropolítica que toma, cada vez mais, tenebrosos contornos e imprevisíveis caminhos?
Perdoe este amigo historiador por iniciar o percurso deste diálogo, que aqui proponho, com provocações que talvez soem presunçosas para um começo de uma conversa que julgo promissora. Talvez este tempo-limite em que nos encontramos já tenha me provocado sobremaneira. Porém, pretendendo compartilhar uma caminhada que julgo comum entre historiadores e jornalistas: o exercício de operações da linguagem. Nessa conversa sobre construção e mobilização da palavra, queria posicionar a questão da verdade como central.
Ao tecer arrazoados e reflexões sobre o ofício jornalístico no tempo presente, venho reconhecendo humildemente e abertamente meus limites e minha ignorância. Nunca passei noites em claro procurando fontes para confirmar uma apuração de uma informação de relevância, ou mesmo sentindo a dureza que é sobreviver a rotina das redações e das ruas. Creio, entretanto, que seja possível neste diálogo a elaboração de um conhecimento crítico que nos mobilize à autorreflexão e à tomada de consciência sobre nossa própria ação.
Do diálogo à renúncia da Verdade
Na peça O Debate, que citei para abrir este ensaio dialogal, Marcos e Paula discutem sobre os limites das premissas do jornalismo neste tempo em que a extrema direita está no poder. São dois personagens jornalistas que estão produzindo o último debate do segundo turno da eleição presidencial de 2022 entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ultradireitista Jair Bolsonaro. Enquanto Paula demonstra preocupação sobre a reeleição do candidato de ultradireita, angustiada sobre o que ela, como jornalista, poderia fazer, Marcos adota inicialmente uma postura mais conformista, ainda que preocupada, sustentando que tomar partido seria romper com a verdade e a imparcialidade do ofício jornalístico. Dessa forma, segundo o personagem, se lançaria certa desconfiança sobre o próprio jornalismo.
Esse posicionamento do personagem talvez represente, senhora e senhor jornalista, seu pensamento ético sobre sua prática profissional. Aqui cabe uma primeira historicização em nosso diálogo. Foi a partir da virada para o século XX que empresas jornalísticas dos Estados Unidos passaram a aderir ao discurso de que a prática do jornalismo deveria se apartar de ligações partidárias para desempenhar a representação do interesse público e a fiscalização dos poderes. Sendo assim, o produto jornalístico deveria ser objetivo, independente e imparcial.
Esse discurso teria sido inspirado pela aproximação dos jornais estadunidenses de um outro discurso hegemônico sobre a produção de conhecimento, o discurso científico. Nos anos vinte, o escritor e jornalista Walter Lippman afirmava que “só há um tipo de unidade possível num mundo tão diverso quanto o nosso … é a unidade do método”. As premissas do método científico como forma de compreender a realidade eram utilizadas pelas empresas jornalísticas como forma de unificar a busca pela verdade e apoiar-se num poderoso discurso de legitimação do seu ofício.
Mas seria realmente possível, meu interlocutor e minha interlocutora, ocupar esse lugar de neutralidade e então produzir um conhecimento sobre fatos e pessoas livre de prismas? Não pretendo aqui, por favor, fechar os significados da sua prática jornalística nem tampouco definir qual deveria ser a função do jornalismo, antes ao contrário, é preciso abrir, dilatar até ao limite seus significados para compreender a historicidade desse discurso e então diversificar as nossas ferramentas de análise e mesmo de construção da realidade. O convite, neste texto, é para que analisemos criticamente esse discurso que ainda nos aprisiona para ampliar a beleza, a arte e a potência de nosso ofício na ação e elaboração de novas realidades.
Do diálogo ao lugar do corpo
Uma vez que programados, meu caro e minha cara jornalista, para elaborarmos nossas narrativas a partir dessa “vontade de verdade”, compreendo muito bem a dificuldade da desconstrução que pode nos levar a libertação. Frutos da modernidade e do primado do saber racional, metódico e cientificista, demonstramos medo em libertar nossa subjetividade, esta que precisaria ser domesticada, controlada, anulada para que o objeto, ou o fato, pudesse se impor sem nossa interferência. Mas ao trilharmos o caminho da desconstrução, percebemos que essa “racionalidade mórbida guiada pela flecha da razão” é que nos impede de enxergar todo o quadro e realidade da vida. A historiadora Sônia Meneses, uma especialista das narrativas jornalísticas, associa essa “vontade da verdade” ao jornalismo da seguinte forma:
A sistematização dos conteúdos jornalísticos se ampara em uma vontade de verdade que auxilia a construção de uma dada legitimidade social de seus discursos e de suas narrativas. Se os recursos se apresentam como lugares evocadores da verdade, elaboram para si, consequentemente, lugares de poder, uma vez que se manifestam como mecanismos autorizados a falar, assim como, interditar outras vozes.
A autora aqui estabelece a relação entre o produto jornalístico e esse pronunciamento de verdade como forma de elaboração de um lugar de poder. Nas palavras da própria historiadora, “associar a produção noticiosa ao discurso científico era garantir a legitimação de um novo estatuto de aceitação no qual a defesa da verdade objetiva afiançava uma informação segura e isenta”.
É aqui que chegamos num ponto crucial de nossa conversa. Precisamos refletir sobre as repercussões dessa apropriação do discurso da cientificidade moderna; inda mais assumindo nosso lugar de enunciação latino-americano. Para o pensador Grosfoguel, o mito da objetividade criada pela modernidade ocidental criou uma tenebrosa neutralidade “descorporificada”. Esse discurso sobre a produção científica universalizou a verdade e mesmo as técnicas para conhecê-la e capturá-la. O sociólogo sustenta que essa estratégia epistêmica foi historicamente crucial para os projetos de dominação do Ocidente sobre outras regiões.
O pensador Santiago Castro-Gómez chama essa estratégia discursiva sobre o lugar social do “produtor do conhecimento” como “ponto zero” das filosofias eurocêntricas. Trata-se de um “ponto de vista que se esconde e se oculta como estando além de um determinado ponto de vista”. Essa perspectiva cientificista particulariza determinadas formas de produção de conhecimento não ocidentais e universaliza as fórmulas da modernidade eivadas da hierarquização colonial. Para o poético historiador Tony Hara, “o pensamento sistemático vai banir aquilo que se mostra diferente, vai homogeneizar o múltiplo e condenar a variedade que existe na vida”.
No campo da História, estamos aos poucos compreendendo a necessidade da crítica ao cientificismo racionalista moderno. Porém, a partir desse diálogo com Castro-Gómez e Grosfoguel, queria provocar você, jornalista latino-americano(a): sabendo, então, que todo conhecimento se encontra incorporado e corporificado em sujeitos situados em determinados contextos históricos, ideológicos e culturais, continuaremos reproduzindo na prática jornalística essa premissa epistemológica universalista e eurocêntrica?
Precisamos reafirmar, neste tempo-limite que vivemos, que não existe produção de conhecimento sem corpo, sem lugar, sem história. É importante afirmar que, nessa decisão, não se trata de um convite ao irracionalismo. Mas, o que se deseja é que, nas palavras de Tony Hara, haja “uma suspensão temporária da razão normatizadora, para suscitar uma visão mais inebriada e encantadora da vida”.
Infelizmente, o jornalismo profissional na América Latina se apropriou e reproduziu essa razão normatizadora, procurando escamotear sua própria ação política. O pesquisador do jornalismo brasileiro Afonso Albuquerque afirma que as instituições jornalísticas nas sociedades latino-americanas internalizaram e naturalizaram fortemente esses modelos normativos, apresentando-se como portadores de valores universais, adaptando-as aos seus interesses. Nesse contexto, Albuquerque afirma que as empresas jornalísticas na América Latina “podem solapar a democracia, ao mesmo tempo em que afirmam defendê-la”.
Conhecendo essa história de reprodução do poder, creio não ser mais possível a sustentação de uma posição de neutralidade jornalística como produtora dessa verdade. É preciso assumir o corpo. É preciso assumir o lugar de enunciação dos discursos para refletir sobre a ação. Tony Hara, conversando com Walter Benjamim, afirma que “o corpo é […] o único meio, a única passagem que leva o pensamento para os territórios inacessíveis do irracional e do inconsciente”.
Sendo assim, é a partir do reconhecimento do corpo e do lugar social que se fala que é possível gerar um conhecimento mais amplo, diverso, plural e honesto intelectualmente. Em outras palavras, é aí que o jornalismo e a sua verdade não antagonizam com a vida. Pelo contrário, ao lidar com essa nova realidade potente e criativa é que o jornalismo pode agir sobre o mundo a partir de sua transformação e libertação.
Do diálogo à ação política
É preciso tomar partido. Refiro-me aqui a uma decisão metodológica sobre seu próprio ofício: é preciso tomar partido sobre si. É preciso renunciar, de uma vez por todas, o discurso que legitima seu lugar de poder. É preciso desvincular essa suposta produção de verdade com uma suposta posição de neutralidade, uma vez que já percebemos que ela só reproduz o status quo desigual em que vivemos.
É a partir dessa tomada de consciência, minha cara jornalista, meu caro jornalista, que poderás agir através de suas operações de linguagem – e esse é o convite que perpassa todas essas linhas que vos dedico. Agir em prol da transformação democrática que creio sinceramente que almejas viver. Recomendo a ti, companheiro e companheira jornalista, um mergulho nessa orientação ética para a produção do conhecimento jornalístico. Eu creio que é a partir desse ethos que se é possível produzir uma verdade conectada com a vida e que atue sobre a realidade, que construa um novo horizonte.
Retomando o diálogo teatral que citei no inicio deste ensaio, podemos então responder ao personagem Marcos que afirmava que ao jornalista caberia apenas dizer a verdade e não salvar vidas. Como seria possível neste tempo histórico acreditar, realmente, na prática de um jornalismo desvinculado da vida? Muito para além dessa questão, lhe asseguro que só se produzirá uma verdade jornalística transformando politicamente o jornalismo e a própria vida.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Afonso. “Protecting democracy or conspiring against it? Media and politics in Latin America”. Journalism, vol. 20, nº 7, 2019.
ARRAES, Guel; FURTADO, Jorge. O Debate. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. “Giro colonial, teoria crítica y pensamento heterárquico”. In: El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica. Bogotá: Siglo del Hombre Editores.], 2007.
GROSFOGUEL, Ramón. “The epistemic decolonial turn”. Cultural Studies, vol. 21, nº 2-3, 2007.
HARA, Tony. Saber Noturno: uma antologia de vidas errantes. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, 2004.
MENESES, Sônia. A Operação Midiográfica: a produção de acontecimentos e conhecimentos históricos através dos meios de comunicação – a Folha de S. Paulo e o golpe de 1964. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, 2011.
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Pablo Silva Pimentel é doutorando em História e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui graduação em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Seus interesses de pesquisa se concentram em Teoria Política, Jornalismo Político e História Social do Jornalismo.