Será que tem espaço para mais uma conversa sobre a cobertura jornalística da Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2022? Jornalística? Um tanto quanto distante das muitas polêmicas e crises que envolvem o Mundial do Catar – e que precisam ser amplamente discutidas de forma contínua e muito além do período do evento –, no Brasil, o torneio tem contado com uma novidade nas transmissões de jogos. É bem possível que você já tenha ouvido falar de Casimiro Miguel, ou Cazé. Com a transmissão de Croácia 1 (4) x (2) 1 Brasil, no último dia 9 de dezembro, ele bateu o recorde de transmissão ao vivo com público simultâneo no YouTube pela quarta vez nesta Copa. Ele se apresenta, no Twitter, como vascaíno, apresentador e streamer. Talvez não pareça relevante, mas vale reforçar: Cazé é homem, branco, heteronormativo.
É difícil não gostar dele. Carismático, Casimiro se tornou referência nacional no final de 2021, após suas críticas a uma declaração homofóbica do jogador de vôlei Maurício Souza viralizarem nas mídias digitais. O react foi veiculado em uma de suas lives no Twitch, que começou a fazer durante o período mais restritivo da pandemia de covid-19, comentando jogos de futebol, reality shows, entre outros produtos culturais. Ele já trabalhava em canais de cobertura esportiva antes. Depois da repercussão massiva de seu trabalho, fez live para o lançamento de um documentário da Netflix sobre o jogador Neymar e também transmissões de jogos de futebol nacional – até a aquisição dos direitos da Copa do Catar por uma parceira do seu canal no YouTube, a LiveMode.
A realização das transmissões em lives pela CazéTV – Twitch e YouTube – foi anunciada bem perto do início do torneio internacional de seleções, após imbróglio entre a Federação Internacional de Futebol (Fifa) e a Rede Globo de Televisão, que detinha os direitos também para a internet. A ideia da inserção do streaming em uma cobertura que seria mais despretensiosa, ao estilo de Casimiro, gerou expectativa sobre o potencial de inovação em uma área em que há pouca renovação de formato e apresentação de conteúdo e informação. Na prática, de acordo com análise do jornalista Sandro Macedo, colunista da Folha de São Paulo, as transmissões se mostraram como um misto de padrão Globo com quinta série. O que, na verdade, indica que são a reprodução de um padrão excludente, pautado, inclusive, na repetição de preconceitos e no reforço da masculinidade hegemônica.
A equipe da CazéTV na cobertura da Copa do Mundo de Futebol Masculino conta com apenas uma mulher, a repórter Isabella Pagliari, que pouco aparece nas transmissões especificamente. Por mais que, em muitas ocasiões, seus reacts indiquem um perfil progressista, nas transmissões de jogos de futebol, Casimiro priorizou aquilo que de mais tradicional há nesse tipo de cobertura: homens que falam para homens, fazendo piadas sobre mulheres e gays, com recorrência do cunho sexual, divertindo-se em pregar peças nos outros. A cobertura esportiva retoma a estética do Clube de Garotos que sempre lhe foi característica, fechando mais uma vez as portas para as mulheres, principalmente, mas também para as pessoas que se diferenciam daquele padrão: homem, branco, heteronormativo.
Novidade?
Enquanto, na televisão, na cobertura da mesma Copa, Renata Silveira foi a primeira mulher a narrar um jogo de Mundial de Futebol Masculino e Ana Thaís Matos foi a primeira comentarista em transmissões de jogos da seleção brasileira, a novidade é a transmissão em um canal em que a masculinidade se reforça. É absurdo que só agora elas sejam as primeiras, mas ainda pior é que as regras do jogo mudem quando elas chegam, quando nós chegamos. Todo o trabalho construído a partir de um ideal de competência – jornalística, inclusive – que nem de longe é necessária quando se é homem, volta a valer muito pouco porque não há vaga, não há espaço e daqui quanto tempo haverá a primeira de cada função nessas “novas” transmissões?
Justamente quando as mulheres chegam e começam a ocupar espaços ainda impedidos a elas, inventa-se uma nova velha forma de fazer a transmissão esportiva, mais uma vez apoiada no pacto da masculinidade. São homens brincando, como meninos, de narrar um jogo, de transmitir uma partida de futebol profissional como se estivessem em uma mesa de bar. Parece divertido e pode até ser. Qual é o problema, então? Como diz Milly Lacombe, o futebol é a última fronteira do machismo. Estando este esporte em um lugar tão demarcado de formação da identidade nacional e central no processo de sociabilidade do brasileiro, qual é o tamanho da exclusão de metade da população que é alijada dele desde a infância, reforçando-se esse afastamento cotidianamente pelos meios de comunicação?
Por causa de uma percepção comum de que não é sério, já que se situa em linha tênue desviante pelos caminhos do entretenimento ou infotenimento, espaços como o futebol e áreas profissionais como a do jornalismo esportivo se tornam trincheiras de manutenção dos preconceitos de uma estrutura social que é misógina, racista e homofóbica. Enquanto nos outros espaços essas práticas são, no mínimo, acompanhadas de notas de repúdio, no futebol há uma permissividade, ainda, que reforça esse lugar identitário como exclusivo de quem seria realmente o cidadão brasileiro: o homem brasileiro. E lá estão, em geral, os homens brancos heteronormativos discutindo nas mesas de debates da cobertura esportiva sobre a questão de pessoas lgbtqia+ e de mulheres no Catar, onde a ausência é relacionada a um ataque aos direitos humanos. Por aqui, tudo bem se forem só homens falando sobre isso, afinal são quem têm autoridade para falar sobre futebol.
Sempre o mesmo jogo
Sinto muito, Cazé. Você é bem legal, sim. Mas nas transmissões de jogos de futebol é só mais um dono da bola, chefe do clube de garotos, em uma época em que já não dá mais – nunca deu, na verdade – para ter espaços em que as mulheres não são consideradas como indivíduos aptos a atuar profissionalmente. As transmissões precisam ser repensadas, sim, há muito tempo. Toda a comunicação feita sobre esportes também, incluindo o jornalismo. A tensão ocasionada pela ascensão do streaming é inevitável, mesmo com a percepção reforçada na Copa atual da dificuldade gerada pelo delay da tecnologia. Entretanto, a inovação deve vir acompanhada de reflexão sobre quem faz e para quem é feita a cobertura, o que os discursos presentes nela reforçam. Não é tão difícil começar a se perguntar: nenhuma mulher? Nenhuma pessoa negra? Só heteronormativos? Cis? Por que, afinal de contas o esporte, o futebol especificamente, com toda essa paixão que ainda mobiliza sim boa parte dos brasileiros, não é para todo mundo?
Não dá para se deparar com essas questões sem pensar no quanto o jornalismo contribui para que tudo seja como está. Se o jornalismo esportivo fosse mais cobrado e se comprometesse a ser mais jornalismo, todos os questionamentos sobre as infrações aos direitos humanos no Catar, por exemplo, teriam sido levantados e investigados à época da escolha da sede do Mundial e não só agora, a partir da ideia de inevitabilidade da realização da Copa por lá. Antes, e na época da escolha, em 2010, no Catar não havia violência contra os trabalhadores migrantes, contra a comunidade lgbtqia+, as mulheres? Só agora?