Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Watergate e os papéis esquecidos do Pentágono

A história do jornalismo americano no século 20 teve seu mais glorioso
período no início da década de 1970, durante a administração Richard Nixon. Duas
fontes anônimas foram fundamentais e decisivas para o sucesso de duas grandes
séries de reportagem.


Uma, o ‘Deep Throat’ do caso Watergate, só se identificou na semana passada;
a outra, Daniel Ellsberg, do caso ‘Documentos do Pentágono’ (‘Pentagon Papers’),
se rendeu às autoridades federais quinze dias após a publicação das primeiras
reportagens baseadas em documentos que ele havia enviado para os jornais The
New York Times
e The Washington Post.


Muito pouco se falou de Ellsberg nas repercussões da revelação de que Mark
Felt era o misterioso personagem que passava informações relevantes sobre a
invasão da sede do Partido Democrata em Washington, em 1972. O que é estranho,
porque a relação entre os dois casos é notória.


Alguns dos ‘encanadores’ da Casa Branca que foram pegos no Edifício Watergate
também participaram, um ano antes, da invasão do consultório do psicanalista de
Daniel Ellsberg, em busca de informações que pudessem incriminá-lo
.


Ellbserg, que está com 74 anos e continua ativo em sua militância política,
pediu na terça-feira (31/5) que Mark Felt receba um prêmio Pulitzer e um prêmio
Nobel honorários pela sua contribuição para o jornalismo americano e para a paz
mundial.


Na sua argumentação, Ellsberg afirma que a Guerra do Vietnã talvez tivesse
durado muito mais se não houvesse sido exitosa a cobertura do Washington
Post
do caso Watergate, e que este sucesso só foi possível graças às
revelações do Garganta Profunda.


De fato, se Mark Felt merece alguma premiação, Daniel Ellsberg talvez mereça
uma ainda mais importante. Porque, na verdade, a decisão que ele tomou (de
passar para jornais os documentos que mostravam como diversos governos, em
seqüência, mentiram ao povo americano sobre as condições do conflito no Sudeste
Asiático) foi o ponto de partida para o aprofundamento do debate interno na
sociedade americana sobre a legitimidade da presença dos EUA naquela região do
mundo – o que acabou por provocar a derrocada de Nixon.


Liberdades sacrificadas


O fato de haver uma grande polêmica nacional atualmente nos EUA sobre se Mark
Felt é um herói ou traidor é sintomático sobre o estado de espírito predominante
atualmente naquele país. Aparentemente, segundo as primeiras enquetes de opinião
pública, a maioria da população acha que Felt fez bem em ajudar a desvendar os
crimes cometidos pela Casa Branca de Nixon. Mas quase a metade dos entrevistados
diz que não, que ele agiu de forma antiética e impatriótica.


Em 1971, quando Ellsberg teve seu julgamento anulado pela Justiça devido à
forma ilegal com que a Promotoria havia coletado provas contra ele, essa questão
nem se colocou. Ellsberg, que havia tentado de diversas maneiras passar ao
próprio governo e a políticos da oposição os documentos que possuía, antes de
levá-los à imprensa, sempre foi considerado pela maioria esmagadora dos
americanos como alguém que havia arriscado a liberdade para ajudar o país a se
safar de um problema político que custava a vida de dezenas de milhares de seus
compatriotas.


É muito improvável que uma situação similar hoje em dia resultasse em
manifestação pública minimamente similar àquela. O 11 de Setembro de 2001 mudou
com grande intensidade os sentimentos da boa parcela da opinião pública
americana em relação a qualquer assunto que diga respeito à segurança
nacional.


O mais curioso é que a Guerra Fria dos anos 1970 era potencialmente muito
mais perigosa para a população dos EUA do que a atual guerra contra o
terrorismo. Na lógica de então, a presença dos EUA no Sudeste Asiático se
justificava porque uma eventual derrota lá poderia significar uma ameaça nuclear
para os americanos. Ellsberg, ele próprio, acreditou nessa teoria durante boa
parte da sua vida.


Agora, depois que cerca de três milhares de civis foram mortos nos ataques de
11 de Setembro, o perigo existe – sem dúvida – mas em escala muito mais
diminuta, uma vez que o poder de fogo dos inimigos nem de longe se compara com
os da então União Soviética.


No entanto, muitos americanos se mostram dispostos a sacrificar várias de
suas liberdades e direitos civis em nome de sua segurança doméstica. Entre esses
direitos listados para um possível desaparecimento, o da liberdade de imprensa,
garantido pela Emenda Constitucional nº 1, aparece com freqüência no topo da
lista.


Recurso legítimo


O governo Bush se parece muito com a primeira fase da administração Nixon no
que se refere às relações com a imprensa. Desde que se estabeleceu a tradição
das entrevistas coletivas, os dois são os presidentes americanos que menos
concederam esse tipo de oportunidade ao diálogo direto entre governante e
repórteres. Além disso, são bastante similares os ataques que nos dois períodos
históricos foram desfechados contra o jornalismo.


O que difere é o tipo de atitude por parte da instituição jornalística e da
opinião pública diante desses assaltos. Há 35 anos, os meios de comunicação se
indignavam e reagiam de modo desafiador a esses avanços. Veja-se, por exemplo,
como os acionistas do Washington Post rechaçaram as ameaças veladas e
explícitas que o governo Nixon fez sobre a possibilidade de lhes cassar as
concessões de rádio e TV que tinham, caso o diário não parasse de publicar as
denúncias contra ele no caso Watergate. Ou a corajosa iniciativa do próprio
Post de dar continuidade à publicação dos documentos do Pentágono vazados
por Ellsberg depois de Nixon ter obtido na Justiça a censura às reportagem que o
New York Times havia começado a editar.


O mesmo em relação à Justiça. A Suprema Corte, em 1971, decidiu por seis
votos a três que o governo não tinha o direito de censurar os documentos do
Pentágono. Dificilmente a atual Corte daria resultado parecido se caso similar
lhe chegasse à consideração. Menos ainda o fará quando a Corte tiver nova
composição, daqui a alguns anos, com dois ou três novos juízes indicados por
George W. Bush.


O mais grave, no entanto, é que a própria imprensa parece acovardada. Diante
de ameaças de prisão para jornalistas que não revelam o nome de suas fontes (o
que nem se cogitou, por exemplo, nos casos de Felt e Ellsberg), não são poucos
os meios de comunicação que respondem com decisões voluntárias de reduzir ou
mesmo eliminar a utilização de fontes off the record de seu
noticiário.


Não são este o espaço e o momento para discutir as muitas distorções da
banalização do off na imprensa americana e – mais ainda – na brasileira.
Mas vale pelo menos registrar que o off, bem utilizado, foi e continua
sendo fundamental para a produção de bom jornalismo.


Que veículos importantes como Newsweek e USA Today tenham
manifestando a decisão de minimizar o off por causa das pressões de
governo e de conservadores na sociedade é um sinal muito revelador – e
preocupante – sobre como anda o jornalismo nos EUA nos dias atuais.

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Jornalista, diretor de relações institucionais da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas