No dia 3 de novembro de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) condenou mais uma vez com votos de maioria esmagadora a política de sanções unilaterais dos Estados Unidos que impõem o bloqueio a Cuba.
Apenas Estados Unidos e Israel se recusaram a votar a favor da resolução. O Brasil e a Ucrânia se abstiveram. E mais um dado nessa história toda é que Havana foi eleita presidente do Grupo dos 77 (G-77) da AGNU, em 23 de setembro de 2022. Apesar disso, uma ou mesmo duas andorinhas não fazem um “outono indiano”. Enquanto tudo isso ocorre, a pérola do Caribe está se esvaziando de seus habitantes. Nunca tantos cubanos saíram do país. Entre outubro de 2021 e 30 de setembro de 2022, 224.607 cubanos migraram ilegalmente para os Estados Unidos, ou seja, de acordo com o Departamento Aduaneiro Norte-Americano, em média, 891 cidadãos por dia. A grande maioria deles atravessou a fronteira mexicana. Este número, no qual não estão contabilizados os migrantes cubanos em trânsito ou bloqueados na fronteira, é considerável. Representa 2% da população total e 4% da população ativa, o segmento mais jovem e com melhor escolaridade. Em 2021, a demografia cubana foi atingida em cheio. A população total diminuiu, assim como a taxa de natalidade.
O que se passa nas terras picarescas de Juan Quin Quin [1]? O sistema “D”, usado pelos cubanos para “dar um jeito” teria esgotado as suas virtudes? Vista da varanda latino-americana e dos países do G77, Cuba tem uma imagem geralmente positiva. O bloqueio norte-americano nunca foi aceito pelos Estados que temem a solidariedade invasiva dos poderosos Estados Unidos. A guerra russo-ucraniana reforçou esse sentimento. Cuba, tal como os seus vizinhos, não concorda com a invasão russa, mas menos ainda com as sanções ocidentais impostas a Moscou. O presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, conseguiu medir a extensão destes denominadores comuns durante uma viagem que não estava prevista, indo da Rússia à China, via Argélia e Turquia, nos dias 17 a 26 de novembro de 2022. Dentre os temas discutidos na viagem, destacam-se o investimento argelino em Cuba, particularmente na fabricação de medicamentos, linhas de crédito chinesas em energia e agricultura, uma extensão da cooperação com a Turquia em biotecnologia, energias renováveis, centrais elétricas flutuantes, turismo e agricultura e entregas de hidrocarbonetos russos, acompanhados de créditos bancários para permitir a sua aquisição.
Do ponto de vista local, a flutuabilidade desse navio é uma questão em debate. No navio cubano tem brotado muita água há vários meses. A tripulação protesta contra o elevado custo de vida, contra os cortes diários de energia, contra o pagamento de telefonia celular em moeda forte. Ela saiu às ruas em 11 de julho de 2021. Em 2022, isso se repetiu várias vezes, a tal ponto que nas últimas eleições municipais, em 27 de novembro de 2022, muitos eleitores inconformados com a situação se negaram a votar. A abstenção saltou quase 20% em comparação com a consulta anterior em 2017. Outros cidadãos cubanos, nas suas dezenas de milhares, como já observado, debandaram para os Estados Unidos, por via marítima, ou via terrestre através da Colômbia, Panamá, Nicarágua e México. As autoridades realizaram uma discreta “plenária” do Comitê Central do Partido Comunista, em 9 de dezembro de 2022, para analisar o diário de bordo e atualizar a agenda. Elas também, muito discretamente, encorajaram uma corrente migratória através de Manágua.
Estas saídas em massa parecem ter reduzido a pressão de reivindicações. Resta saber se as causas desta tempestade social podem ser sanadas. Bill Clinton e os seus conselheiros estavam provavelmente certos. É tudo sobre a economia. Cuba tem passado há muito tempo por muitas provas, especialmente após o desaparecimento da URSS e das democracias populares. O “período especial”, nome dado a este difícil período, ainda se encontra na memória dos cubanos. Por outras razões, para além de algumas que já existiam e ainda existem, o país atravessa agora uma tempestade econômica de intensidade semelhante.
Os indicadores ficaram vermelhos desde 2020. O PIB caiu 13% em 2021. As fontes de moeda estrangeira, turismo, saúde e migrações foram afetadas pelas várias crises dos últimos anos. Por exemplo, em 2020-2021, a Covid-19 afetou um dos setores que é uma das principais fontes de renda de moeda estrangeira no país, o turismo. Os clientes canadenses e europeus ficaram confinados em seus territórios de origem. Cuba impôs também barreiras sanitárias dissuasivas. De 4,3 milhões em 2019, o número de turistas diminuiu para 300.000 em 2021. Pode ter chegado a 1,7 milhões em 2022. Ao mesmo tempo, afetado por sanções norte-americanas e europeias cada vez mais seletivas, o aliado venezuelano reduziu drasticamente as suas entregas de petróleo a preços amigáveis. A invasão russa da Ucrânia aprofundou a crise energética e provocou um aumento dos preços na ilha.
Cuba fez uma boa tentativa para reavivar a sua indústria turística. A duração do visto turístico foi prolongada de 1 de novembro de 2022, de 30 para 90 dias. Mas esta tentativa provocou sérios problemas. Devido à falta de manutenção adequada, a reforma de prédios sem a restauração de vários serviços públicos terminou em tragédia em 6 de maio de 2022. O Hotel Saratoga, reformado após dois anos fechado, pegou fogo, matando cerca de 40 pessoas. Em Matanzas, a maior refinaria do país, mais uma vez em função de falta de manutenção adequada, se incendiou em 5 de agosto de 2022. Alguns investidores estrangeiros, tais como o Grupo Accor, duvidaram da possibilidade de uma rápida recuperação para obter lucros e poder investir novamente.
Existem, evidentemente, duas fontes de renda importantes: migrantes que vivem no estrangeiro e que enviam dinheiro aos parentes no país e o setor da saúde, ambos como geradores de dólares. As exportações de vacinas contra a Covid-19 e um grupo de médicos são duas forças com as quais o país conta hoje para retornar aos níveis econômicos anteriores ao Coronavírus e à guerra na Ucrânia. O dinheiro dos migrantes, também em declínio, é imediatamente reinvestido pelos seus beneficiários em produtos brancos (refrigeradores, aparelhos de ar-condicionado, televisores etc.). Isto provoca literalmente um curto-circuito numa rede elétrica com problemas de distribuição, aumentando a procura por eletricidade.
Enquanto se espera por uma possível suspensão, parcial ou total, do bloqueio econômico dos EUA, e pelas medidas de abertura econômica que podem vir a ser adotadas pelo governo, a “decência” em Cuba continua a ser um ideal procurado e inalcançável. Segundo o escritor Leonardo Padura, autor de um romance intitulado Personas décentes, “na realidade cubana, é muito difícil ser totalmente decente”, porque, de uma forma ou de outra, é necessário fazer coisas que são oficialmente ilegais para sobreviver [2].
Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 10 de dezembro de 2022, no site IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, Paris/França, com o título original “Venezuela en double morale”. Disponível em: <https://www.iris-france.org/172438-venezuela-en-double-morale/ >. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.
[1] As aventuras de Juan Quin Quin”, filme cubano de Julio García Espinosa, 1967
[2] Em El País, Madrid, 31 agosto 2022, p. 23.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.