A decadente falência das instituições políticas desencadeada por cabais escândalos que têm vindo à tona através da mídia deixa uma considerável parcela da população descrente diante da atuação da maioria dos nossos representantes públicos, que deveria garantir o bem-estar coletivo.
Frente a esta trágica realidade, a articulada indústria cultural inaugura uma nova fase para angariar ainda mais vastos recursos financeiros e imperar soberana no mercado cultural capitalista. Programas jornalísticos, e também de entretenimento, especialmente os televisivos, travestidos pela participação popular, emergem pelo viés delimitado pelo sensacionalismo.
Saturados de clamar desesperadamente por socorro aos governantes, que em sua grande parte se esqueceram dos princípios que regem a democracia, cidadãos passam a clamar por ajuda aos meios de comunicação para solucionar problemas emergenciais que prejudicam a rotina de sua vida em sociedade.
Um travesti de jornalismo
A indústria cultural, que não inclui solidariedade em seu vocabulário, dispôs-se a percorrer este novo caminho trilhado por uma crescente demanda para lucrar gordas cotas publicitárias através da elevação de sua audiência por intermédio da exploração do drama humano. Basta ligar nossos aparelhos de TV e zapear pelos canais da programação vespertina da TV aberta para comprovar tal afirmação. Diversos programas denominados jornalísticos reportam, incessantemente, o extremo limite humano. São incontáveis as cenas que exibem imagens de frias execuções com tiros disparados à queima-roupa; renomados ou típicos profissionais acusados de estupro ou pedofilia, dramáticos resgates de crianças presas em bueiros que, por negligência do poder público, não havia ordenado a manutenção, entre outras infindáveis matérias de que, no momento, não me recordo para elencar uma extensa lista.
Diante da periódica exibição destas mazelas humanas ignoradas pela maioria de nossos políticos, os veículos de comunicação ganham, a cada dia, novos adeptos para este voyeurismo midiático que eleva consideravelmente seus índices de audiência e, conseqüentemente, as cifras de suas contas bancárias.
Pagamento em barras de ouro
Mas não só de sensacionalismo travestido de jornalismo vive a indústria cultural. Os seus rentáveis produtos de entretenimento também estão, a cada dia, mais recheados pela bruta exposição dos limites humanos, especialmente através dos reality shows. Em sua 10ª edição, o Big Brother Brasil não se cansa de exibir os tortuosos conflitos desencadeados pela forçada convivência de anônimos desconhecidos em um ambiente distante do convívio social.
A Fazenda, já em sua segunda temporada, tenta melhorar sua popularidade entre os telespectadores editando dissimuladas brigas entre pseudo-famosos protagonizadas em um luxuoso ambiente rural instalado pela Rede Record em Itu, interior de São Paulo.
Sílvio Santos também não quis perder a oportunidade de elevar ainda mais os lucros do poderoso conglomerado de empreendimentos que leva seu nome. Depois de constantes visitas a feiras no exterior, o Homem do Baú negociou a exibição de uma adaptação de Solitaire, da Fox, para seu canal de televisão. Com capítulos exibidos nas noites de segunda e quinta-feira, Solitários mostra inusitados participantes que permanecem confinados em uma pequena cabine em condições mínimas de sobrevivência que recebem ordens de um computador chamado Val.
Ao invés de serem tratados por seus respectivos nomes, eles são friamente denominados por números, tendo assim sua identidade ignorada pela máquina virtual responsável por submetê-los a provas de resistência física e também de raciocínio lógico. Caso não consigam realizá-las, os participantes são eliminados do programa, que tem como prêmio a magra quantia de apenas R$ 50 mil, paga por Sílvio Santos tradicionalmente ‘em barras de ouro que valem mais do que dinheiro’.
Conflitos enfadonhos
A música tocada no encerramento de Solitários, The Bittersweet Symphony, da banda britânica The Verve, revela o que os reality shows não fazem questão de esconder: ‘You´re a slave to money then you die’ (Você é um escravo do dinheiro, então você morre), mas ‘I can change’ (Eu posso mudar), porém, ‘no change’ (não mude).
Ou seja: uma parte considerável da população ainda irá continuar a clamar pelo auxílio da mídia para solucionar seus problemas sociais, não exercendo, assim, sua cidadania ao cobrar de nossos representantes que exerçam o papel para o qual foram eleitos e são muito bem remunerados.
A maioria ainda permanecerá com receio de enfrentar aqueles a quem nós mesmos demos poder e irá a alimentar a insaciável indústria cultural ao afogar suas mágoas diante da mágica telinha da TV assistindo aos enfadonhos conflitos protagonizados em reality shows desencadeados simplesmente pelo fato de não haver nada mais útil para se fazer naquele delimitado espaço onde ocorre a exposição máxima do limite humano.
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Jornalista, Pedro Leopoldo, MG