Timidamente começa a surgir nas redes sociais um debate sobre a utilidade das nossas Forças Armadas. O tema é quase um tabu na política brasileira e algo que gera medo e insegurança na maioria da população porque acaba associado a um sentimento de desproteção. Mas a conjuntura mundial contemporânea mostra que a função dos militares precisa ser repensada, no mínimo para uma atualização.
Primeiro, porque o fim de Guerra Fria e do espectro de uma nova conflagração mundial, desta vez atômica, acabou com boa parte das justificativas para a existência da corrida armamentista e do inchaço permanente dos efetivos militares ao redor do globo. A guerra na Ucrânia é, neste contexto, uma empreitada comercial do complexo industrial militar do Ocidente e ao mesmo tempo uma tentativa de Wladimir Putin reavivar o nacionalismo russo para se manter no poder.
Enquanto isto, o mundo assiste o crescimento contínuo do crime organizado e das milícias de extrema direita, usando métodos e táticas contra as quais as Forças Armadas convencionais não estão preparadas para enfrentar. E mais do que isto, acabam se tornando um pesadíssimo fardo financeiro a ser subsidiado por quem paga impostos, achando que está pagando pela sua segurança. Aqui no Brasil, os contribuintes sustentam 380 mil militares da ativa e 460 mil inativos e pensionistas, a um custo anual de 86 bilhões de reais, a maior folha salarial de todo o governo federal e que corresponde a quase 33% de tudo que o Tesouro Nacional paga a seus funcionários (1). Isto é mais do que os gastos com pessoal na Educação (R$ 64 bilhões) e Saúde (R$ 17 bilhões) juntas, segundo artigo publicado por Edson Rossi, editor da revista Isto É.
Aqui, na América do Sul, cresceu também a certeza de que são cada vez mais improváveis e ineficientes as guerras entre vizinhos, geralmente nutridas em velhas divergências herdadas do período colonial, ou então, megalomanias de ditadores, quase sempre militares, de criar conflitos internacionais como válvulas de escape para o desgaste político doméstico.
O caso da Costa Rica
Fala-se muito no caso da Costa Rica, o único país latino-americano que aboliu Exército, Marinha e Aeronáutica em 1948, como parte de um acordo entre facções políticas exaustas de tanto guerrearem entre si, usando exércitos próprios. Setenta e cinco anos depois, a Costa Rica pode se orgulhar de ter se livrado da síndrome da dependência militar mesmo estando numa região que na década de 70/80 esteve mergulhada em violentos conflitos armados.
Mas, ao contrário do que muitos pensam, a Costa Rica não é um país desprotegido. As Forças Armadas foram substituídas por uma Fuerza Pública (equivalente a uma força policial) cujo efetivo atual gira em torno dos 15 mil homens e mulheres, que formam 0,4% da força total de trabalho do país e consomem cerca de 0,3% do PNB costarriquenho (2). Além da Fuerza Pública existem outras unidades policiais como os agentes de trânsito, policiais municipais, polícia penitenciária e unidade de investigações especiais (GAO), subordinada ao Poder Judicial.
Comparar Costa Rica com o Brasil em termos objetivos é algo fora da realidade. Nosso território é 167 vezes maior do que o deles. Nossa população é 41 vezes superior à deste pequeno país centro americano. O nosso PIB (Produto Interno Bruto) é 31,1 maior. Mas do ponto de vista da população, os habitantes da Costa Rica se sentem muito mais seguros com relação a agressões externas do que nós, e não é por falta de vizinhos turbulentos como Nicarágua, El Salvador e Panamá. Apesar destas enormes disparidades, há algo que podemos aprender com os ticos (apelido nacional dos costarriquenhos)
Segurança nacional e corporativismo militar
Nos cinco anos que vivi na Costa Rica deu para perceber que a inexistência de um exército regular precisa ser vista por dois ângulos: o da segurança nacional e o da ausência de um corporativismo militar. Do ponto de vista da segurança nacional, o país não se tornou mais vulnerável a ataques de vizinhos e nem perdeu a sua autonomia. Para a população, a presença da polícia transmite a mesma sensação de proteção que nós, por exemplo, alimentamos historicamente em relação às Forças Armadas brasileiras.
A grande e perceptível mudança ocorrida na Costa Rica com relação à inexistência de um Exército, Marinha e Aeronáutica, está na ausência do corporativismo militar existente no Brasil. Não existem generais, almirantes e brigadeiros que formam uma casta fardada que defende os seus interesses a ferro e fogo, ameaçando sempre com o fantasma de agressões externas e da insegurança generalizada. A vigilância marítima da Costa Rica, tanto no lado Pacífico como no lado do Caribe é feita por efetivos navais da Força Pública e não há Força Aérea, apenas helicópteros do governo. A polícia não tem nem sombra do poder político usufruído pelas Forças Armadas do resto da América Latina.
De alguma forma, a Costa Rica antecipou uma solução que hoje começa a ganhar adeptos no continente, diante do crescente corporativismo egocêntrico dos militares do Brasil e de grande parte da América Latina. As supostas ameaças externas se tornaram simplesmente impensáveis no nosso caso. Só um delirante poderia imaginar países como Uruguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e as Guianas invadindo o nosso território com tropas, aviões e navios de guerra. O único país da região que poderia desenvolver qualquer tipo de ação bélica contra nós seria a Argentina, mas, mesmo assim, é irreal a hipótese de que seu exército consiga chegar até São Paulo.
A guerra real
Delírios a parte, temos por outro lado um problema real e complexo ao longo de todas as nossas fronteiras, por conta da crescente presença do crime organizado, milícias, narcotraficantes, garimpeiros, desmatadores e seitas várias. Como os militares estão preparados para guerras, o combate às máfias acaba não acontecendo por falta de treinamento e equipamentos adequados. A intervenção militar no Rio de Janeiro para combater as milícias e o narcotráfico, há cinco anos, foi um fiasco em matéria de resultados concretos.
Para que precisamos de aviões supersônicos quando na realidade necessitamos de helicópteros, aviões de transporte e de vigilância aérea para combater narcotraficantes. De que adianta um submarino nuclear se o que precisamos são lanchas rápidas nos rios amazônicos e barcos especializados no combate à pesca predatória e ao contrabando em nosso litoral marítimo. Qual a serventia de blindados em grandes favelas que hoje estão caindo sob o domínio de milícias e máfias criminosas. E, principalmente, para que servem quarteis que ocupam terrenos valorizadíssimos quando o que precisamos são serviços de inteligência para monitorar narcotraficantes, garimpeiros e invasores de terras públicas e indígenas, bem como agentes especializados no combate ao crime organizado.
Refletir e discutir sobre uma reforma do nosso modelo de segurança é um processo complexo e urgente porque nossas Forças Armadas estão se transformando cada vez mais em quistos ou feudos dentro do nosso sistema político. Por outro lado, verificamos uma politização crescente em nossas polícias. Se ambos os processos continuarem no ritmo atual caminharemos para um modelo de insegurança generalizada tanto no que se refere à sobrevivência individual quanto a do processo democrático.
A transformação dos feudos militares em forças de segurança pública pode combinar a eficiência administrativa e organizativa das Forças Armadas com a necessidade de proteger a população contra o avanço delinquencial crescente das milícias do crime organizado. É um debate que precisa ser iniciado e onde a imprensa e o jornalismo tem um papel essencial para evitar a polarização ideológica, pois se trata de abandonar um modelo herdado da era colonial e substituí-lo por outro adaptado à nova realidade do país e do mundo.
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Notas
(1) Detalhes no Portal da Transparência
(2) Dados do Banco Mundial e do jornalista Alessandro Solis. Para comparação, os militares brasileiros formam 0,7% da nossa força de trabalho e o Uruguai, 1,3% do total de trabalhadores ativos. O Uruguai gasta 6,6% do seu orçamento com Forças Armadas.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.