Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O jornalismo entre quadros e janelas

Como embalar sanduíches de hambúrguer sem agredir o ambiente? O pessoal da rede McDonald’s quebrou a cabeça durante bom tempo, nos Estados Unidos, para escapar da pressão de ambientalistas e consumidores ecologicamente corretos.

Esse drama rendeu, há alguns anos, uma longa e divertida reportagem traduzida e publicada pela Gazeta Mercantil. Com humor, o autor da reportagem realizou uma rara façanha: transformou numa história relevante e gostosa de ler os problemas particulares de uma empresa em face de um assunto geralmente chato. As páginas de negócios seriam muito mais legíveis, se editores, pauteiros e repórteres do setor houvessem lido e recortado aquele texto.

Macroeconomia pode ser difícil e nem sempre atraente, mas não é preciso explicar ao leitor mediano a importância de matérias sobre inflação, emprego, balanço de pagamentos e nível de atividade. Não sendo um alienado completo, ele sabe que reportagens sobre esses temas tratam direta ou indiretamente de sua vida. É muito menos evidente a relevância de certas matérias sobre negócios.

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Há uns vinte anos, alguns editores decidiram que os jornais deveriam atribuir mais espaço aos assuntos da ‘sociedade civil’ e menos atenção às atividades ‘de governo’. Deveriam dar mais ênfase à vida empresarial e a temas de interesse pessoal dos leitores, considerados como consumidores, poupadores, trabalhadores e, em alguns casos, empresários.

Havia um engano evidente nessa avaliação. Quem faz política econômica é a autoridade, mas macroeconomia não é assunto apenas ‘de governo’, especialmente quando se vive, como se vivia na época, a um passo da hiperinflação e do desastre econômico.

Pelo menos em relação a esse ponto os fatos forçaram os editores a recobrar o juízo. A cobertura macro continua a ser o foco principal das páginas de economia, com alguns altos e muitos baixos, mas no lugar que lhe cabe. Quanto à cobertura de negócios, ainda não foi calibrada de forma satisfatória na maior parte dos jornais.

Parte do material é autopautável. Trata de grupos grandes e muito visíveis. É indispensável acompanhar os problemas da Varig e da Vasp e as tentativas de solução. Não há como desconhecer a movimentação de empresas como a Vale do Rio Doce e a Companhia Siderúrgica Nacional ou a competição entre o Pão de Açúcar, o Carrefour e o Wal-Mart. O colunista de música pop seria capaz de pensar nesses temas, se tivesse de substituir por um dia ou dois o pauteiro da seção econômica.

Outro grupo de matérias inclui reportagens e notícias de relevância muito menos evidente. São histórias que podem atrair quem acompanha o mercado de ações ou quem se interessa profissionalmente pelo dia-a-dia dos negócios. Algumas importam apenas à empresa de que trata a matéria e, com certeza, à assessoria que distribuiu o press release.

Não há nada de errado em dirigir parte da informação aos compradores de ações ou a pessoas com interesse profissional. Mas convém levar em conta que esse material é destinado a um público restrito e tem pouco ou nenhum atrativo para o leitor, mesmo aquele competente em assuntos econômicos e empresariais que apenas deseja ser bem informado. Esse leitor não deve ter muito interesse no lançamento de debêntures desta ou daquela empresa, ou na mudança de linha de produção desta ou daquela indústria, se o foco da história for muito reduzido.

Além do mais, parte das notícias e reportagens de foco restrito é mera excrescência. Por que diabo, deve perguntar o leitor, devo ser informado em detalhe sobre o novo anúncio deste ou daquele sabonete antes de sua exibição na TV? Muitas matérias sob a rubrica ‘propaganda e marketing’ são apenas publicidade gratuita. Por que transformar em notícia aquilo que a empresa divulga como propaganda paga, a menos que se trate, realmente, de uma novidade muito excitante?

Debate enriquecido

O dia-a-dia da vida empresarial pode render boas matérias, no entanto, quando há uma ligação entre o caso particular e um tema de interesse amplo. Mesmo um assunto especializado, como a gestão de estoques, pode render uma boa reportagem, se a história contada for exemplar. Melhor, ainda, se houver uma ligação com um tema de interesse público.

A matéria sobre a embalagem de hambúrguer foi divertida e atraente não só por tratar de um grupo conhecido mundialmente, o McDonald’s. A reportagem descrevia o esforço de uma empresa diante de uma questão objetivamente importante – a preservação ambiental – e de grande apelo para a opinião pública.

O tema de apelo social pode ser, também, de grande relevância econômica. Bom exemplo é a história de um financiamento de bancos europeus à Imcopa, uma empresa paranaense esmagadora de soja. Um consórcio bancário liderado pelo Hypo Vereins Group, da Alemanha, adiantou 50 milhões de dólares para a empresa com a condição de que trabalhe apenas soja tradicional, isto é, não transgênica. A Imcopa, que não é uma das maiores esmagadoras, conseguiu diferenciar-se no mercado, segundo a Gazeta Mercantil, vendendo à Europa e ao Japão exclusivamente produtos não-transgênicos.

A matéria, publicada na primeira página da Gazeta (2/6), é uma história empresarial de interesse amplo. É importante para o leitor especializado, porque mostra um exemplo de estratégia bem-sucedida. É atraente para quem se interessa pela política agrícola, porque exibe as vantagens de uma das opções de produção. Ao mesmo tempo, enriquece o debate a respeito do valor comercial de produtos transgênicos e produtos tradicionais. Não resolve a discussão, mas amplia o arsenal de argumentos. Um gol para a autora da matéria, Lucia Kassai, e para seu editor.

É sempre arriscado formular critérios para o trabalho jornalístico. Reportagens como essa, no entanto, podem fornecer padrões interessantes para a avaliação de pautas e de matérias. Um desses padrões é muito simples: as melhores histórias, mesmo de negócios, não são quadros fechados numa moldura; são janelas.

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Jornalista