Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ingratidão, o mal dos séculos

‘A ingratidão é sempre uma forma de fraqueza. Nunca vi homens de caráter serem ingratos’, escreveu Goethe. Mas a mídia oferece exemplos frequentes de que em política a ingratidão é moeda usual. O velho tema tem ensejado interpretações de um ‘divertido horror’, como dizia Nelson Rodrigues.


De repente assaltado por sentimento de ética, incoerente com o seu prontuário, ex-aliado denuncia o cúmplice ou chefe, antes tratado pelo ‘vício insanável da amizade’, na infeliz expressão do deputado mineiro Edmar Moreira, dono de um castelo medieval. Ora, amizade é virtude; vício é defeito. Como podem estar juntos os dois conceitos?


A amizade é um sentimento nobre, eivado de ética, a ponto de Cícero ter-lhe dedicado um livro, De Amicitia (A Amizade), em que defende a tese de que uma vida sem amizade é uma vida sem sentido. Certamente, o grande tribuno tinha conceito contrário ao que destilam nossos pequenos tribunos todos os dias, quando, instados ou não por repórteres, se põem a justificar torpes ações com fins nobres. Escreveu ele:




‘A única ocasião em que não devemos deixar de ofender um amigo é quando se trata de lhe dizer a verdade e de lhe provar assim a nossa fidelidade. Porque não devemos deixar de sobreavisar os nossos amigos, ainda quando se trate de os repreender. E nós mesmos devemos levar isto em boa vontade, quando tais repreensões são ditadas pelo bem querer.’


Taxa de agradecimento a Deus é 10%


Sêneca também tratou do tema e recomendou:




‘Tal como numa epidemia, devemos ter o cuidado de não nos aproximarmos das pessoas afetadas, porque correremos perigo só de respirarmos perto delas, também, em relação aos amigos, devemos ter o cuidado de escolher aqueles que estão menos corrompidos: a doença começa quando se misturam os homens saudáveis com os doentes’.


Ocorre que a sociedade deve muito a alguns ‘ingratos’, que resolveram denunciar esquemas de ‘amigos’. É preciso colocar tais palavras entre aspas porque, sobretudo em política, nos tempos que correm, a corrupção campeia também entre elas. Vêm aí as eleições e estejamos preparados para a corrupção dos conceitos e das palavras, não apenas de corruptos que se apresentarão como se nada lhes tivesse acontecido, já que os fichas-sujas vão candidatar-se de novo.


Mas e a ingratidão, tal como está definida nos dicionários, como se dá ela? Como o espaço é curto, tomemos um exemplo da literatura inglesa, depois tornado universal. Em Tímon de Atenas, Shakespeare apresenta-nos um modo de entender a ingratidão humana, um pouco semelhante à cura dos dez leprosos. Apenas um voltou para agradecer a Jesus. Como se vê, a taxa de agradecimento a Deus é de 10%. Entre os homens, está quase sempre próxima de zero. Em Tímon de Atenas é zero, exatamente zero.


Alcebíades, banido pelo Senado


Tímon é rico e generoso. Protege as artes e as letras, mas a gente da cultura procede de modo bem diferente daqueles que apenas o adulam para cada vez ganhar mais. O filósofo Apemanto faz dura e profética advertência ao amigo. Aquele modo de vida o levaria à ruína. Flávio, operador das finanças de Tímon, não se cansa de reclamar das extravagâncias e excessos do patrão. Mas este não dá ouvidos a nenhum dos dois. Ele sente grande prazer em gastar. Um homem rico também tem credores. E esses, preocupados, mandam seus agentes cobrar o que Tímon lhes deve. Flávio informa o patrão que ele deve o dobro do que possui.


Tímon acha que se trata de problema de fácil solução. É só procurar aqueles a quem favoreceu, especialmente Lúculo, Lúcio e Semprônio. O primeiro manda dizer que não está em casa. O segundo diz que não tem como ajudar o amigo. E o terceiro fica ofendido por ter sido procurado depois dos outros dois. Tímon convida, então, os ex-amigos para um banquete. Todos dão suas desculpas esfarrapadas. Tímon serve apenas um prato de água quente a cada um. Mas não fica nisso. Atira a água na cara deles, expulsa-os de sua casa e os amaldiçoa.


Perto dali, no Senado, seu amigo Alcebíades, o famoso general, é banido pelos senadores por ter insistido em livrar da pena de morte um soldado que esteve a seu lado em defesa dos atenienses. Inconformado, o militar organiza suas tropas para atacar Atenas.


‘Que minha guerra gere a paz’


Desiludido de tudo, Tímon vai morar numa caverna perto do mar. Passa a alimentar-se de raízes. E certo dia, procurando comida, encontra um tesouro enterrado. A notícia espalha-se por Atenas e as pessoas voltam a visitá-lo. Tímon, porém, entendeu a dura lição que a vida lhe deu. Doa uma parte de seu tesouro ao general e outra a Flávio, o operador, recomendando-lhe que evite a caridade. Também Apemanto vai visitá-lo.


Temendo o poder de Alcebíades, o Senado manda uma delegação a Tímon, pedindo ajuda contra o militar. Tímon diz que o que vai acontecer à cidade não lhe interessa. Enquanto isso, Alcebíades, procurado para conciliação, faz as pazes com Atenas, com a seguinte cláusula: não vão mais perseguir os inocentes, muito menos seus amigos e os de Tímon.


Depois de tanta luta, a paz chegou tarde. Tímon acabara de morrer na caverna.


Para escrever a peça, Shakespeare baseou-se num dos episódios de Bioi Paralleloi, título grego de Vidas Paralelas. Plutarco, seu autor, deu este título porque alternou a biografia de um estadista ou general grego com outra de um romano.


A tragédia termina com a fala de Alcebíades diante dos senadores:




‘Quero que minha guerra gere a paz, que a paz reprima a guerra e que uma seja o remédio soberano da outra. Mandai tocar nossos tambores.’

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras