Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da medalha do Mérito Indigenista ao Cocar do Genocídio

(Foto: Clauber Cleber Caetano/PR)

Faz menos de um ano, no dia 15 março, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, agora preso sob a acusação de envolvimento na tentativa golpista do 8 de janeiro, tinha concedido a ele próprio, ao então presidente Bolsonaro, e mais 23 aliados a medalha do Mérito Indigenista. Entre eles foram agraciados a ministra do agronegócio Tereza Cristina, a ministra Damares Alves, que impediu a entrega de água potável para os índios yanomami, os ministros Braga Neto, Augusto Heleno, que era contra a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, e o atual governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas.

O texto publicado no Diário Oficial explicava o porquê da honraria: “Como reconhecimento pelos serviços relevantes em caráter altruístico, relacionados com o bem-estar, a proteção e a defesa das comunidades indígenas”. Quem ler agora essa frase não poderá evitar uma sensação de nojo e enjôo, tamanha a hipocrisia, mentira e falsidade nela contidas.

No decorrer da solenidade, Bolsonaro um dos maiores inimigos das demarcações de terras indígenas, admirador da cavalaria norte-americana, que tomou as terras dos índios nos EUA, e que gostaria de transformar em parques de atrações e turismo as aldeias indígenas, chegou mesmo a colocar na cabeça um cocar, tendo nos braços uma criança indígena. Sydney Passuelo, ex-presidente da Funai e uma das maiores autoridades do país sobre os povos nativos, devolveu sua medalha e considerou uma ofensa a entrega da honraria a Bolsonaro, que já sugeriu que o Exército brasileiro deveria ter “dizimado” todos os índios.

Hoje, diante das cenas das crianças famélicas e mortas de inanição, Bolsonaro não tardará a receber do Tribunal de Haia de Direitos Humanos um outro cocar bem mais merecido e verdadeiro, o Cocar de Genocida.

E onde foi parar o romantismo indianista?

A tragédia vivida hoje pelos yanomami, pelo descaso e mesmo pelo projeto latente de destruição dos indígenas, já defendido há muitos anos por alguns militares e pelo deputado Bolsonaro, logo no começo de sua carreira política, faz muita gente se perguntar o que teria acontecido com o romantismo indianista vivido pela literatura e música no século XIX, mas ainda vivo até meados do século passado.

O poema valorizando a coragem, força e virilidade entre índios timbira e tupi de Gonçalves Dias, “I-Juca-Pirama”, os romances de amor entre descendentes de europeus e índios de José de Alencar, “Iracema” e “Guarani”, exaltavam a componente indígena no sangue dos brasileiros que ia surgindo das inevitáveis misturas dos colonizadores portugueses com os habitantes nativos ou autóctones.

Nos meados do século passado, imagens românticas da jovem mulher índia inspiravam composições musicais. Uma delas, “Índia”, com a dupla Cascatinha e Inhana, cantada mais tarde por Roberto Carlos, era uma versão brasileira de uma música paraguaia e conquistou muito sucesso. Mas não era o canto de uma relação amorosa constante, e sim de uma aventura que terminaria. Embora de sangue tupi, a índia vivia no Paraguai.

Há menos de cem anos, a revista Cruzeiro, primeira grande revista nacional de fotos, acompanhou a simbólica história de amor entre o sertanista branco gaúcho de Uruguaiana, Ayres Câmara Cunha, com a índia Diacuí (Flor do Campo), de 22 anos, da tribo Kalapalos, no Xingu. Uma história que sensibilizou os brasileiros, nos anos 1952-3, pois a presença indígena por misturas desejadas, reconhecidas ou não é marcante na população.

Talvez haja mesmo uma simbologia nessa história de amor de um civilizado com uma índia, naturalmente bela e atraente. Ao contrário do registrado nos dias de hoje, quando índias são violentadas por garimpeiros, o sertanista Ayres, de acordo com a mesma Cruzeiro, queria tornar a bela Diacuí sua esposa legal. Essa história romântica de amor dominava o noticiário da época, pois o regulamento do Serviço de Proteção aos Índios proibia todo tipo de aproximação mais íntima de seus funcionários com os indígenas que deviam proteger. Diante disso, Ayres saiu do Xingu e foi ao Rio para obter uma autorização ou uma mudança nos estatutos do SPI.

De acordo com um relato de Roger Baigorra Machado, formado em História e com Mestrado em Integração Latino-Americana pela UFSM, a história não foi bem assim. Ayres já vivia com Diacuí e ia perder seu emprego por isso. A ideia de se casar evitaria a demissão e o magnata Assis Chateaubriand, dono da revista, viu nisso uma bela história a ponto de se tornar o padrinho do casamento, na Candelária do Rio de Janeiro. Diacuí retornou ao Xingu, onde teve um parto complicado e, na ausência do marido, que estava em outra região, morreu, deixando uma filhinha que, ela sim, foi criada e viveu em Uruguaiana.

Roger, que tem hoje função importante no Centro de Operação de Emergência em Saúde para a Educação em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, concluiu no blog Rede Sina, em agosto do ano passado, com um comentário bem atual: “Depois de conhecer a história de Diacuí, após ler a versão das memórias de Ayres, depois de estudar a história das Reduções Jesuíticas, ler sobre os bandeirantes, depois de saber dos oito mil indígenas mortos pelos governos militares e suas políticas de etnocídio, sobre as centenas de aldeias destruídas pela faraônica Transamazônica, não é possível calar. Não é possível deixar que a história de Diacuí viva na imaginação de Uruguaiana como se ela fosse um conto de fadas. Ela é tudo, menos um conto de fadas. Diacuí deve ter uma cadeira cativa na história, pois lembrar da forma como tratamos nossos povos originários é o que nos fará ter memória enquanto país.”

A emigração, globalização e os evangélicos

Essa visão romântica e edênica das florestas (“Aquarela do Brasil”, “Canta Brasil”) com seus índios valorosos foi mudando com a chegada dos imigrantes, sem a ascendência indígena seja no sangue ou pela história e formação do Brasil e com a globalização. Bolsonaro, de pai e mãe italianos nunca se entusiasmou com os indígenas e seu projeto maior – e, por isso, ser acusado de genocida – era o de acabar com as demarcações de terras indígenas e entregar as terras férteis, ocupadas por índios e florestas, para os garimpeiros e agronegócio. O abandono no qual foram deixados os yanomami era voluntário e fazia parte desse projeto.

Ocorre um paradoxo na posição de militares, como Menna Barreto com seu livro “A Farsa yanomâmi”, que acusava a demarcação das terras indígenas como um projeto de internacionalização da região, que acabaria fora de controle do Brasil, com os ardorosos defensores dos militares e Bolsonaro. São líderes evangélicos que, há tempos, estão empenhados, talvez sem conhecimento dos fiéis seguidores, num tipo de desnacionalização da Amazônia, a pretexto de levarem o conhecimento do Evangelho aos grupos indígenas vivendo isolados naquelas florestas, cumprindo assim a profecia de que, terminado esse trabalho, “virá o fim, com o retorno de Jesus Cristo, previsto na Bíblia”.

Ora, sabendo-se que a cada avanço dos missionários evangélicos ocorrem mortes e epidemias nas comunidades indígenas por contato com doenças para as quais não têm anticorpos, a intenção aparentemente inocente e ingênua, de evangelizar indígenas e salvar suas almas, provocando a dizimação de tribos, converge paradoxalmente e se identifica com os objetivos dos exploradores do agronegócio e garimpeiros interessados em esvaziar as terras indígenas de seus milenários ocupantes, para delas se apossarem.

Ainda nesse mesmo raciocínio, o cumprimento dos objetivos idênticos dos donos do agronegócio, garimpeiros e pastores missionários evangelistas acabará favorecendo principalmente as missões evangélicas estrangeiras. Ao retirarem os indígenas de suas crenças ancestrais e os converterem ao evangelismo de versão principalmente norte-americana criam focos diferentes do resto da população brasileira, que poderão se unir na defesa desses interesses religiosos estrangeiros contra a comunidade nacional, num contraponto aos seguidores de teses como as de Menna Barreto.

O precedente que parece confirmar essa análise é o de que, embora aparentemente diferentes em questões morais e religiosas, os seguidores evangélicos acabaram se unindo de maneira fanática em torno dos preceitos nem sempre cristãos do bolsonarismo, justificando mesmo a adesão dos seus líderes políticos à tortura, à violência, à intolerância de gênero, à agressão à natureza com o desmatamento, ao abandono da responsabilidade social em matérias de direitos humanos e de defesa do meio-ambiente. A ponto de muitos terem participado e ainda justificarem o ataque golpista e a invasão dos prédios dos Três Poderes em Brasília.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.