Bolívia, Brasil, Colômbia, Haiti, México e Peru começaram o ano com o pé esquerdo. Esses deslizes e derrapagens têm um lado inesperado. Alguns desses países, como o Haiti, saíram do foco da mídia internacional. Outros, como o Brasil, ao contrário, estiveram nas primeiras páginas da imprensa mundial, que celebrou a volta de Lula ao poder e homenageou a memória do jogador Pelé. Seria prematuro esse “tudo bem, tudo bom com América Latina”? Ou isso apenas é revelador de uma visão superficial das coisas?
Os fatos são teimosos. Há pelo menos três semanas eles têm nos lembrado de sua realidade, de maneira incisiva e brutal. Merecem, para além das situações nacionais, uma leitura continental. Na Bolívia, a primeira em ordem alfabética deste inventário, o presidente Luís Arce mandou prender em 28 de dezembro um de seus opositores mais resolutos, o governador do estado de Santa Cruz, Luís Fernando Camacho. Camacho é suspeito de ter organizado o golpe de 2019, tendo forçado a saída de Evo Morales. Evo Morales deveria ter felicitado esta ação da polícia, que surpreendeu a todos. Ele tomou ciência disso sem ter feito nenhum comentário particular. Vários prédios públicos de Santa Cruz foram saqueados por simpatizantes do governador, detido oficialmente em caráter provisório por quatro meses.
O Brasil foi vítima, em 8 de janeiro deste ano, de um ataque às suas instituições democráticas de alcance inusitado. Os prédios dos três poderes foram ocupados por uma horda de adversários do presidente Lula. Apoiadores de Bolsonaro ocuparam e destruíram o Congresso, o STF e alguns outros espaços do Palácio do Planalto, sede da presidência. Pior ainda, o novo governo, os ministros envolvidos, a polícia federal, as forças armadas, não foram capazes de agir preventivamente.
Na Colômbia, Gustavo Petro anunciou com tambores e trombetas a abertura de negociações com a guerrilha do ELN (Exército de Libertação Nacional). Poucas horas depois da divulgação pública da informação, o ELN o desmentiu. O erro é significativo. Na verdade, é mais do que um erro: é uma falha, minando a capacidade do Chefe de Estado de governar sem confundir aceleração de medidas com mero afobamento.
Em 9 de janeiro, o Haiti perdeu seus últimos membros eleitos, os últimos dez senadores ainda legítimos. Sem eleições desde 2016, o Haiti não tem mais parlamento. O México ainda luta para controlar seu território. Em 2 de janeiro, criminosos invadiram uma prisão em Ciudad Juarez e libertaram 25 detentos. Dezessete mortes ocorreram, lamentavelmente. Em 5 de janeiro, um dos líderes do Cartel do Pacífico, Ovidio Guzman Lopez, foi preso. Dez soldados e dezenove bandidos foram mortos. O Peru, por sua vez, viveu e ainda vive um episódio a mais da crise institucional latente que vive há trinta anos. O golpe do presidente Pedro Castillo, seguido de sua prisão, foi sucedido por um estado de emergência em que foram mortos pela polícia cerca de cinquenta opositores.
Além de sua diversidade, esses eventos têm um denominador comum. As instituições democráticas, longe de estarem estabilizadas, estão sendo desafiadas. Isso vem ocorrendo, é verdade, de maneiras bem diferentes de um país a outro. No entanto, a contestação da autoridade do Estado sobre parte do território, no México, o “desaparecimento’, sem alarde do parlamento haitiano, o golpe de estado permanente da direita no Brasil e no Peru, as dúvidas políticas sobre os presidentes de “esquerda” da Bolívia e do Peru testemunham as dificuldades democráticas na América Latina. Por não conseguirem resolver um passado de discriminação social e racial, à época das independências, as sociedades perpetuaram desigualdades de cor e riqueza tão significativas que se apoderam da máquina dos compromissos democráticos. Todos os tipos de radicalismo impulsionados pelas novas tecnologias de comunicação aguçam a intolerância, o egoísmo e a rejeição de toda sociedade. Amanhã talvez tenhamos novo material para alimentar os jornais e revistas de informação que surfam sobre a espuma dos acontecimentos políticos tão espetaculares quanto inesperados.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, no dia 23 de janeiro de 2023, na seção ‘Analyses’ do site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “Un début d’année politique et sociale perturbé et perturbant en Amérique Latine”. Disponível aqui . Tradução de Jeniffer Aparecida Pereira da Silva e Luzmara Curcino.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso – UFSCar e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura.