Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ética depende de política?

As matérias da Veja e do Fantástico, analisadas na primeira matéria ‘Reportagens que mexem com a história‘, de Mauro Malin, e o comentário dos médicos de Harvard em relação ao caso Tancredo Neves – ‘Médicos de Harvard criticam divulgação‘ merecem análise adicional.

Evidentemente que não pretendo falar na tão propalada ‘ética na política’, que me parece algo como misturar água com óleo, discorrer sobre sexo dos anjos ou adivinhar a taxa de juros na próxima reunião do Copom. A questão é essencialmente de ética médica, assim como de moral e ética em sentido mais amplo, filosófico e político.

Uma prolongada e complexa ditadura militar encobriu o Brasil por 20 anos, com idas e vindas nos quartéis de modo totalmente apartado da sociedade, castigada sem saber a razão por uma pesada censura. De adivinhações e fontes secretíssimas vinha alguma coisa a lume, além de alguns dribles que conseguiam informar algo, e outros completamente incompreensíveis (como bem disse Chico Buarque recentemente em Nova York, ao lembrar que por causa da censura suas letras às vezes davam tantos volteios que mesmo hoje há coisas que nem ele mesmo consegue saber o que pretendia dizer). Fustigar a liberdade de expressão dá nisso,no mínimo. As demais conseqüências do regime militar são muito mais bem comentadas por outros, de Elio Gaspari às recentes publicações sobre a Operação Condor.

Seja como for, inegavelmente Tancredo Neves era um político em tempo integral. Gostando-se ou não dele, poucos duvidam da sua competência nesse arenoso terreno, tanto assim que conseguiu o impensável: eleger-se presidente civil de oposição ainda em pleno regime militar, no Colégio Eleitoral, sob as regras impostas pelos militares, concorrendo contra Paulo Maluf. Mas, não só ele sabia muito bem, a caserna e seus acólitos civis não devem ter ficado nada contentes com esse resultado, e ações militares de última hora bem poderiam ocorrer. Tancredo e seus mais próximos colaboradores, civis e militares, conseguiram contornar uma previsível crise.

Diferença cultural

Mas eis que chega a véspera da posse, e numa dessas tragédias inacreditáveis, o presidente eleito é internado, operado e, bem, o resto já se sabe – morreu e foi dada a posse a seu vice, José Sarney, sem direito a faixa presidencial de João Figueiredo, que saía.

À época dos fatos muito se falou a respeito: da tal diverticulite ao leiomioma, tumor benigno; às condições do Hospital de Base de Brasília; a competência técnica e ética dos médicos do Distrito Federal; após a transferência do paciente para o Incor, o afluxo dos mais importantes médicos do complexo hospitalar do Hospital das Clínicas-Faculdade de Medicina da USP para atender o ilustre paciente; as coletivas otimistas concedidas por médicos da equipe, contrastando com o desfecho do caso; até a vinda de Warren Zapol, de Harvard, para atestar que foi feito todo o possível quanto à saúde de Tancredo.

Em relação aos médicos brasilienses, sabe-se que o Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal sindicou o acontecido por lá, e aplicou penas públicas a dois médicos que atenderam Tancredo. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo também investigou a fundo o caso,e concluiu que não houve nenhuma infração ética por parte dos profissionais que atenderam ao paciente no INCOR.

Agora, com a revolta da família de Tancredo ante a revelações feitas, anos depois, pelos médicos que o haviam atendido, consultou-se novamente o Dr. Zapol sobre a questão ética que envolve a divulgação de fatos relativos a pacientes com vida pública.

Um primeiro comentário é o da diferença cultural entre nações, que naturalmente atinge questões éticas profissionais. Os códigos de ética médica internacionais baseiam-se nos princípios hipocráticos de 2.300 anos atrás? Correto. Mas sua aplicação como texto disciplinador pode mudar de um lugar para outro. Um exemplo básico: no Brasil, um médico só poderá ser processado por infração ético-profissional, ou seja, pelo CRM, caso a suposta infração tenha ocorrido no exercício da profissão. Caso ocorram atos imorais ou criminosos que um médico tenha perpetrado sem estar investido da função de médico, caberá apenas à Justiça ordinária a análise do caso; mesmo que o CRM decida processar e punir um médico nessas circunstâncias, isso gera nulidade processual. Dessa maneira, um médico que cometa assassinato agressão sexual em ato médico, para se ter uma idéia, enfrentará, além da Justiça, o processo no CRM. Por outro lado, um médico fora de qualquer atividade relacionada à profissão não poderá ser sindicado e punido pelo CRM (exemplo célebre é o de Hosmany Ramos). Já nos Estados Unidos, embora as normas éticas gerais sejam parecidas, admite-se a punição ético-profissional pelo Board, o CRM de lá, mesmo que o médico tenha tido atitude considerada antiética sem estar exercendo seu papel na profissão. É uma tremenda diferença na prática, não é mesmo?

A situação é a mesma

O mesmo se aplica à discussão entre o médico Zapol e seus colegas da Harvard Medical School, detalhada na matéria de Mauro Malin. Mostram que, mesmo considerando que um segredo médico nunca deva ser divulgado, chegam a admitir exceções para pessoas com cargos públicos, como o do político com câncer que concorreria à indicação à presidência com Bill Clinton. Essa relativização ética é muito diferente da cultura legal brasileira, facilmente constatada nos geralmente espetaculares julgamentos midiáticos americanos, quando em quase todas as situações entram em ação o ‘juiz leigo’ e os ’12 homens raivosos’ que formam o júri, ao passo que no Brasil apenas vão a júri os casos de homicídio doloso.

O sigilo profissional visa resguardar a privacidade do paciente, seja ele quem for: no próprio Código de Processo Penal há a descrição do ‘segredo de confessionário’, ao qual estão presos médicos, sacerdotes, advogados etc. Numa situação típica, um notório criminoso pode estar sob processo judicial e, caso tenha sido atendido por um médico, o promotor ou mesmo o juiz pode solicitar sua presença para esclarecimentos. A lei penal é clara, assim como o código de ética médica: convocado pela Justiça, o médico tem o dever de se apresentar ao magistrado, mas não poderá divulgar nenhuma informação, mesmo sob coação. As únicas exceções permitidas são as mais óbvias: se o próprio paciente autorizar a divulgação da informação, ou no caso da impossibilidade deste, seus parentes ou responsáveis legais.

Dessa forma, boletins médicos ou entrevistas concedidas por médicos que tratavam à época de Tancredo Neves, tudo deveria ser autorizado pelo paciente, se consciente estivesse, ou por seu responsável legal. Décadas depois, ainda que com a intenção de esclarecer para fins históricos uma situação marcante para o país, a situação é a mesma: o responsável legal pelo presidente eleito deveria ser consultado para dar autorização ou não à divulgação de fato relativo àqueles eventos. Dessa maneira, embora nossa curiosidade nos mova a querer saber detalhes daqueles tensos dias, segundo os princípios éticos brasileiros não se pode abrir o segredo sem autorização da família. Daí pode-se bem imaginar o porquê da indignação dos parentes de Tancredo.

‘Não’ indiscutível

Mas havia uma circunstância atípica: o risco de não se dar posse a um presidente civil de oposição e ser mantido o regime militar. Ante um quadro político altamente complexo e grave no cenário nacional, uma mentirinha aqui e outra ali não seriam tão sérias, certo? Não é bem assim. Também ocorreram ‘mentirinhas’ em atestados de óbitos de presos pela ditadura, que ocultavam a tortura. Aos médicos que passaram sobre a ética em tais casos deve-se lançar o peso da condenação ética, e aos que mentiram para o ‘bem’ não? Pode-se chegar ao extremo de comparar as ‘experiências’ genéticas dos nazistas com o que se faz hoje em dia… Absurdo!

Ética envolve princípios fundamentais, que dificilmente mudam. Mas a evolução da sociedade, da cultura de cada momento histórico e do avanço técnico e científico podem e devem ajustar tais normas, com o máximo cuidado possível, à realidade vigente. Afinal, no juramento hipocrático os médicos devem prometer jamais interromper a gestação. O aborto não é largamente utilizado de modo legal em inúmeros países? Por outro lado, os impedimentos legais e éticos da proteção da privacidade de pacientes dificilmente poderão encontrar respaldo para a abertura de exceções.

Mesmo assim, cada caso deve ser analisado individual e pacientemente, antes de se lançar os envolvidos na fogueira. Na matéria citada ficou evidente a diferença entre nossos princípios e de nossos irmãos do Norte: eles ficaram em dúvida, consultaram-se uns aos outros, até darem sua posição ao Observatório. Um médico brasileiro,caso consultado, ciente das bases da ética profissional, com certeza não demoraria segundos em dizer ‘não’ à divulgação de segredo profissional sem o consentimento do paciente ou de seu responsável, esteja vivo ou não, seja ou não pessoa de grande importância pública.

******

Médico, mestre em Neurologia Clínica pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM-SP