Os eleitores franceses e holandeses disseram ‘não’ ao tratado constitucional europeu, a denominada Constituição Européia, abrindo uma crise grave na construção européia, a maior e mais bela aventura política desde o final da Segunda Guerra Mundial.
O processo de aprovação desse texto continuaria, em princípio, até final de 2006, quando a totalidade dos 25 países envolvidos se deveria ter pronunciado. Até hoje, 10 dessa nações o aprovaram – as únicas negativas vieram da França e da Holanda, países fundadores. Porém, mesmo se a totalidade dos outros países aprovar a Constituição, e como é muito provável que o povo britânico – caso seja consultado – a recuse, é óbvio que o seu futuro se apresenta muito duvidoso.
Uma União Européia sem a França e o Reino Unido não faz sentido. Nesse meio tempo a Europa continuará a funcionar com base no tratado de Nice, mas desde já o vencedor é o Reino Unido, cujo objetivo sempre foi de evitar uma União Européia politicamente forte.
Razões semelhantes
Muito se escreveu e escreverá sobre as razões que levaram o povo francês a se pronunciar pela negativa. O texto da Constituição é demasiado longo, dando azo a que qualquer um encontrasse razões para o recusar. O recurso a um referendo para a aprovação de um texto desse teor, ‘a frio’, é discutível, principalmente quando solicitado por um presidente desacreditado, e um governo atingindo níveis recorde de impopularidade. E, sobretudo, a França convive com uma crise econômica que se vem arrastando há anos, criando um desemprego crescente, que atinge sobretudo os jovens e os trabalhadores de mais de 50 anos.
O ‘não’ pode ser interpretado como uma censura à política do presidente Jacques Chirac. E também, justificadamente ou não, como uma recusa ao aprofundamento da Europa baseado numa política liberal, criadora de instabilidade e desemprego nos países mais desenvolvidos, nos quais a proteção social está atingindo seus limites e onde a mão-de-obra é mais cara.
Nesse ‘não’ se cristalizou o medo em relação ao alargamento da Europa aos países do Leste europeu, com sua mão-de-obra de qualidade, barata, e na ausência de perspectivas de uma harmonização fiscal. Revelou-se também o receio em relação à entrada clamorosa da China no mercado mundial.
A União Européia sempre foi ‘vendida’ como um prolongamento da proteção que os Estados garantiam aos seus cidadãos (o chamado ‘modelo social europeu’). A crescente concorrência mundial convenceu uma maioria de cidadãos franceses e holandeses que a Europa na realidade era o cavalo-de-Tróia da ‘mundialização’.
O voto negativo foi, portanto, eminentemente popular, atingindo proporções maciças em regiões industriais sinistradas como o norte da França, que já viveu o ocaso da indústria extrativista (carvão) e de tecelagem, para não falar no açúcar de beterraba, agora sob grave ameaça da concorrência do Brasil.
A esse voto popular se adicionou o voto jovem, gravemente afetado pelo desemprego, e o de extrema-direita, tradicionalmente antieuropeu. Atrás do ‘sim’ se perfilaram as classes mais favorecidas (cerca de 80% do eleitorado de direita), e os de mais de 60 anos, protegidos do desemprego, e para quem a União Européia tem um significado histórico. Na Holanda, as razões foram basicamente as mesmas – apenas o aumento exponencial do número de imigrantes instalados no país e a perspectiva da entrada da Turquia tiveram mais peso que na França.
Informação equilibrada
À exceção do Partido Comunista, todos os partidos representados na Assembléia Nacional francesa – gaulista, centrista, socialista, verde – defendiam a aprovação da Constituição. O que retrata a gravidade da crise política institucional na França.
Caso a Constituição tivesse sido apresentada ao Parlamento, teria sido aprovada por cerca de 90% dos votos do parlamentares. O referendo revelou uma vez mais, de forma nítida, o largo fosso existente entre as elites políticas e a maioria da população.
Mas esse fosso vai além da política: todos os grandes jornais e revistas, de esquerda ou de direita – Le Monde, Le Figaro, Libération, Le Parisien, Nouvel Observateur, L’Express, Le Point… – apelaram também para a aprovação da Constituição. Entre as redes de rádio e televisão, o apelo ao ‘sim’ foi ainda mais maciço, transformando-se em propaganda desenfreada contra o ‘não’ e seus adeptos, a ponto de desencadear protestos da redação da Antenne 2, e de merecer uma chamada à ordem por parte da autoridade de controle.
Entre o começo de janeiro e final de março deste ano, 71% das intervenções na rádio e televisão teriam apoiado a Constituição, contra 29% advogando o ‘não’. Mesmo se vozes alternativas tiveram também o seu espaço, as redações dos jornais receberam milhares de mensagens dos leitores protestando contra a ‘diabolização’ do ‘não’.
Enquanto isso, a campanha pelo ‘não’ corria solta pela internet. Vários sites, como o etienne-chouard.free.fr/Europe, que recebeu mais de 700 mil visitas, foram criados para esse efeito, e o spam de apologia ao ‘não’ prosperava entre os utilizadores do e-mail.
Se os líderes políticos são hoje acusados de ‘elitismo’, os dirigentes das empresas de comunicação deveriam também se interrogar. Segundo uma sondagem da revista Marianne (que não se pronunciou sobre o referendo, nem num sentido nem no outro), 49% dos leitores do Le Monde votaram pelo ‘não’, que foi também adotado por 53% dos leitores de Libération, 58% dos leitores do Parisien, 86% do comunista L’Humanité, mas apenas 33% do Le Figaro, de direita.
Cinqüenta e sete por cento dos telespectadores da TF1, a emissora francesa de televisão líder de audiência, também optaram pela rejeição do texto constitucional. Não teriam esses cidadãos direito a uma informação mais equilibrada, independentemente da legítima opinião da redação?
Indústria de massa
Na França existe uma sólida tradição de conivência entre jornalistas e a classe política. Todos evoluem no mesmo meio, tratam-se por ‘tu’, freqüentam os mesmos restaurantes e bares parisienses. Para o diretor de Marianne, Jean-François Kahn, o referendo deixou claro que a política e mídia na França estão entre as mãos de uma elite burguesa, herdeira de Maio de 1968 com seu cosmopolitismo e liberalismo de comportamento, mas que aderiu ao liberalismo do modelo econômico atual. Ao contrário, os eleitores teriam exprimido no referendo a rejeição pelas atuais tendências neoliberais e libertárias e suas conseqüências desagregadoras da sociedade tradicional.
Essa opinião vale o que vale: a verdade é que o modelo vigente na grande imprensa exclui de forma crescente a opinião desviante dentro das redações e entre colaboradores e colunistas, favorecendo um consenso a que na França se chama de pensée unique ou langue de bois (‘pensamento único’, ou ‘conversa mole’).
Segundo vários relatos, o industrial Serge Dassault, proprietário do Figaro e do L’Express, entre muitos outros jornais e revistas, teria comentado, com sua franqueza legendária, que nem precisava dar instruções às suas redações, visto que todos os jornalistas eram naturalmente pelo ‘sim’. Hoje tem acesso à mídia quem é formado em jornalismo ou faz parte das classes dirigentes. Não quem exprime opiniões com largo apoio na sociedade. O que significa que a oposição ao sistema, aos grandes interesses, sejam eles nacionais ou econômicos, passa por outros canais. E que a grande imprensa acaba se confinando a uma elite, a uma elite de velhos.
Para o estudioso de mídia Dominique Wolton, num recente artigo no Le Monde, a mídia é o motor da comunicação política, mas deve evitar uma ligação íntima demais com as elites e conservar a função de mediação entre os diferentes setores da sociedade. Esse é o seu papel democrático. ‘Os media não são os porta-vozes dos políticos e dos especialistas de sondagens, e devem refletir as outras opiniões. Eles garantem a heterogeneidade, sem o que não existe respiração democrática’, escreveu Wolton.
Essa questão não deveria também passar como ‘perdas e danos’, no momento em que jornais e revistas tentam a todo o custo rejuvenescer o seu público leitor. Le Monde e Le Figaro, com seus brindes de filmes e livros, que garantem em parte a sua sobrevivência, dirigem-se cada vez mais aos consumidores e cada vez menos aos cidadãos. Esse fenômeno não é, obviamente, apenas francês. Ainda recentemente, uma grande editora de revistas alemãs, a Grüner und Jahr, divulgou uma nova estratégia de lançamentos, que privilegia as tiragens curtas apontando para as classes mais favorecidas, alvo prioritário da publicidade, em detrimento das grandes circulações.
A verdade exige que se assinale que, num pronunciamento recente, o presidente da Hachette Filipacchi Médias defendeu uma tese contraditória: para Gérald de Roquemaurel, diante da ‘especialização’ e parcelamento das audiências da televisão, os editores de revistas deveriam se dirigir de novo ‘à massa’, criando revistas de grande público, sobretudo endereçadas a um público jovem. Mas, que revistas? Revistas de fofocas de televisão…
É inegável que desde que a edição se transformou numa indústria de massa, a imprensa entrou numa lógica de mercado, abrindo uma avenida para os novos meios, de que se apoderam os jovens e os desvalidos do progresso.
Perda de influência
A rejeição do tratado constitucional não é uma boa notícia para a Europa, nem para o mundo, nem evidentemente para países em desenvolvimento como o Brasil. O enfraquecimento e parcelamento da Europa, o levantar dos escudos nacionais, confortam o egoísmo e isolacionismo americanos e as conseqüências vão se fazer sentir nas grandes negociações comerciais internacionais.
Não existe resposta clara para a atual crise institucional européia, mesmo sendo óbvio que a xenofobia, o fechamento das fronteiras e a demagogia que sempre aparece associada a essas reações de desespero não representam certamente uma saída.
Também não existe uma resposta clara para a perda de influência da mídia tradicional. O bom senso reclama, porém, que os jornalistas não se transformem em funcionários, repercutindo o consenso dos clientes em vez de ouvirem a voz dos cidadãos.
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Jornalista