Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fake news cresce na diferença de qualidade entre o noticiário para o assinante e do acesso grátis

A fake news é hoje a inimiga pública número um da democracia (Foto: Pixabay)

Com algumas alterações impostas à memória pelo tempo que passou desde que aconteceram os fatos, há uma história que costumo contar nas minhas palestras que, no meu entendimento, é útil para aplainar o caminho da conversa que vamos ter. No final da década de 50, a minha família era pobre e morava em Encruzilhada do Sul, pequena cidade na Serra do Sudeste, no Rio Grande do Sul, onde a água congela nos canos no inverno. Eu tinha lá os meus 10 anos, e como adorava escutar os noticiários no rádio, resolvi pedir para a minha mãe, a dona Loni, me comprar um jornal. Dias depois, ela apareceu com um jornal. Olhei a capa, vi que era velho e reclamei: “Mãe, é velho”. Ela me perguntou: “Tu já leste?”. Respondi: “Não li, mãe”. E ela arrematou, encerrando a discussão: “Então é novidade para ti”. Bons tempos aqueles que os pobres podiam ler as notícias nos jornais de papel velhos, que eram usados para enrolar mercadorias no comércio varejista de alimentos. Nos dias atuais, quem tem dinheiro para pagar assinaturas de TV, sites, jornais digitais e outras plataformas de notícia tem acesso a uma informação de boa qualidade. Quem não tem dinheiro para pagar a assinatura tem acesso aos noticiários das TVs abertas e rádios, que são de menor qualidade.

Claro que não é a única razão. Mas é entre a diferença de qualidade da notícia paga e a gratuita que as fake news prosperam. Vamos pegar um acontecimento recente, que impactou a opinião pública. Os atos terroristas de bolsonaristas radicalizados que em 8 de janeiro invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF), e quebraram tudo que encontraram pela frente no Congresso, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (STF). As pessoas que são assinantes das TVs a cabo, sites, jornais digitais e outras plataformas têm diariamente ao seu dispor informações profundas sobre os acontecimentos e a opinião de comentaristas altamente qualificados e bem informados. Os seguidores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) espalharam fake news de que o quebra-quebra teria sido praticado por infiltrados no seu movimento. O assinante, pelo volume e qualidade das informações que recebeu sobre esse fato, tem melhores condições de separar o joio do trigo do aqueles que só tem acesso a informações gratuitas aos noticiários das TVs abertas, rádios e outras plataformas. As novas tecnologias da comunicação que são agregadas ao dia a dia dos jornalistas têm contribuído para aprofundar a diferença entre os que têm dinheiro para pagar a assinatura e os que não têm. E os estrategistas da extrema direita perceberam esse fato, se organizaram e aproveitaram a chance de ressurgirem na política como uma força competitiva significativa, que elegeu Donald Trump presidente dos Estados Unidos (2017 a janeiro de 2021) e no Brasil, Jair Bolsonaro (2019 2022). Trump (republicano) assumiu o governo e no minuto seguinte deu uma banana para a imprensa e passou a se comunicar com os americanos usando as redes sociais. Bolsonaro (PL) seguiu no mesmo rumo.

Os dois enfiaram os pés pelas mãos e não se reelegeram. Mas os movimentos de extrema direita que os elegeram continuam mais ativos do nunca. Participo e acompanho os grandes debates ao redor do mundo sobre a nossa profissão de repórter. A diferença da qualidade da notícia à disposição dos assinantes em relação à oferecida gratuitamente ao leitor é um assunto que não faz parte dos nossos debates. Mas vai fazer, porque existe muita gente estudando a respeito do ressurgimento da extrema direita na disputa política. Comecei a trabalhar em jornalismo pelo departamento de circulação, a turma que nos tempos do jornal de papel colocava os exemplares nas bancas, nas mãos dos jornaleiros que ficavam nas esquinas das cidades gritando a manchete da capa e na entrega do jornal na casa dos assinantes. Os grandes jornais só circulavam nos estados localizados no litoral brasileiro. Nos estados do oeste e centro do país chegavam com grande atraso alguns exemplares. Não tinha como encher um caminhão de jornais em São Paulo e mandar para Cuiabá (MT) ou Boa Vista (RR). Lembro-me que no começo da década de 90 eu estava fazendo matéria em uma reserva extrativista nos arredores de Xapuri, uma pequena cidade do Acre, na floresta amazônica. Fiquei por lá quase uma semana e a única maneira de saber o que acontecia no mundo era um rádio. As emissoras de rádio da região tocavam música o dia e a noite inteira. O único programa que eu escutava era a Voz do Brasil, tradicional noticioso do governo federal que existe desde 1935. Nos anos 70, Mato Grosso e os estados vizinhos, que na época eram chamados de fronteiras agrícolas, foram povoados por agricultores gaúchos e seus descendentes, que ergueram lá o que chamamos de agronegócio, que hoje é responsável por uma parte importante do PIB nacional.

Mesmo nos dias atuais, em que as cidades são bem equipadas e a maioria da população tem uma boa renda, tantos as notícias para assinantes de conteúdo jornalístico quanto as das TVs abertas que circulam por lá não têm nada ver com a realidade local. Conheço muito bem a região e os seus meios de comunicação. Desde o final da década de 80 ando por lá de dois em dois anos procurando histórias para contar. A última vez foi em 2019. Na ocasião, recém tinha começado o governo Bolsonaro. E ser bolsonarista na região era motivo de orgulho. Os estrategistas da campanha do ex-presidente foram inteligentes e aproveitaram que os meios de comunicação nacionais simplesmente viraram as costas para a região e venderam a sua versão dos fatos. Tiveram tanto êxito que George Washington de Oliveira viajou de carro de Belém (PA) até Brasília levando um imenso arsenal de armas e munição para se juntar ao “exército do Bolsonaro” para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na Capital Federal, ele e outros dois cúmplices tentaram explodir um caminhão-tanque carregado com 63 mil litros de querosene de aviação – há matérias nos jornais.

Fato é o seguinte. A maioria da população não é assinante de TVs a cabo ou de outras plataformas pagas de comunicação. Nos últimos anos surgiram importantes sites de notícias que dão acesso aos leitores aos seu conteúdo sem cobrar nada. Teoricamente, a qualidade da notícia do assinante e do leitor de acesso gratuito deveria ser no mínimo igual. Mas não é. A do assinante é melhor. É assim no Brasil e no resto do mundo. A novidade é que os estrategistas da extrema direita descobriram que podem usar isso a seu favor. Já o fizeram e tiveram sucesso. E agora?

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.