Não me lembro exatamente de quando contatei o editor do Estadão com a proposta de fazer a cobertura do Festival de Cinema de Berlim. Em todo caso, em 1988, um ano antes da queda do Muro, eu estava viajando para a capital dividida da Alemanha e, daí pra frente, durante alguns anos, faria essa cobertura. Eu cobria com regularidade, desde os anos 80, o Festival de Locarno, mas ir a Berlim, que eu ainda não conhecia, e garantir a cobertura dos dez dias, era um desafio (que eu me propunha cumprir). Principalmente, era uma enorme oportunidade para aumentar minha área de trabalho, além da chance de reforçar meu fim do mês de correspondente frila. Não falava alemão, mas francês e inglês; devia bastar e bastou.
Cheguei a Berlim com a cara e a coragem e com uma bagagem pesada, que incluía o computador, o gravador para entrevistas e um pesado microfone. E como fazer para, depois de inscrito, ter acesso aos filmes? Hotel, já havia reservado de Berna, o Steiner, no qual ficaria a cada ano até ele fechar e eu encontrar a UFA Fabrik. Fazendo minhas perguntas aqui e ali, nos meus primeiros dias na cidade, encontrei um jovem alemão assíduo do festival, que falava francês, Peter Schuster, que me ensinou os primeiros passos.
Ficamos amigos. Todos os anos nos encontrávamos no Festival, mas depois perdi seus traços (mas tentarei encontrá-lo depois de terminar este texto). Logo nesses primeiros anos, minha companheira Hanna, depois esposa, começou a me acompanhar e acabamos formando uma dupla, na qual ela passou a cuidar da parte básica, programas, horários e agora das reservas online nos cinemas. Depois de alguns anos, entrei na lista dos jornalistas convidados, me livrando das despesas de hotel.
Como contei sobre minha condição de correspondente frila, naquela época e durante tantos anos, vale lembrar en passant que os chamados freelancers do jornalismo foram os precursores do uber de hoje: ganhavam sem descontos e sem contribuição para o INSS, sem juntar a proteção para os dias futuros. Minha imprevidência de não prever vida longa se repercutiu na minha aposentadoria.
Berlim foi para mim uma grande experiência em termos de cinema, de contatos e entrevistas com atores, cineastas e produtores; o prosseguimento dessa abertura veio, quando colaborando com a OMS e ONU, acabei fazendo outras viagens mais longas para a África e Ásia.
Por que toda essa recordação nostálgica? Porque esta é minha última Berlinale, como também se chama o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Os jornais mudaram, os editores também, a mídia mudou no seu todo, surgiram novas maneiras de fazer uma cobertura de festival e já não tenho mais a chance de reunir diversas coberturas de Berlim seja para jornais, rádios, brasileiros e portugueses. Mesmo com minha teimosia, tenho também de aceitar minha idade!
Por isso, nestes dias de Festival, estou sem a preocupação de fazer a cobertura diária, com sua exigência de pressa e correria na elaboração dos textos críticos. Vou me permitir dar mais tempo a certas reflexões sobre os filmes vistos, destacando alguns em particular, acentuando alguns pormenores e deixando para mais tarde comentários mais amplos sobre filmes na competição.
Não me lembro de ter havido, nos festivais passados, tantos filmes românticos, lembrando romances de fotonovela ou telenovela, como este ano. Como já afirmei, não faço hoje críticas de filme por filme, mas vou tentar me lembrar de detalhes ou reflexões, talvez, como é de meu hábito, com certa ironia.
O primeiro filme da competição era alemão, com um longo título, cuja tradução é mais ou menos esta, “Ainda se contará tudo um ao outro”, ou mais simples e de outra maneira, “Tudo acabará se sabendo”. E eu acrescentaria: ainda mais em questão de sexo (quem trepou com quem?) ou de amor. Esse filme tem direção feminina (temo escrever realizadora ou diretora, porque Berlim acabou com as distinções de gênero em termos de intérpretes, não existindo mais os prêmios de melhor ator e melhor atriz).
Continuemos: a realizadora alemã do filme “Irgendwann werden wir uns alles erzählen” citado, Emily Atef, de 50 anos, num belo filme com a excelente atriz principal Marlene Burow, constrói sua história ao gosto do romantismo do século XIX, digno de fotonovela, com uma história nada feminista. Vamos lá: a personagem principal, de 19 anos, tem um namorado, com qual transa tomando os cuidados da época (logo depois da reunificação da Alemanha). O rapaz, bem jovem, é atraído pela fotografia; viajando da fazenda onde vivem vai até uma grande cidade, descobre e compra uma Hasselblad, ali decidindo que estudará fotografia e será fotógrafo de profissão. Em síntese, um bom rapaz, com o qual iria se casar.
Isso se não aparecesse no seu caminho um sujeito machão de 40 anos, mal visto na região e que se mostra violento ao fazer sexo, tanto que a jovem seduzida pelos traços do macho fica com manchas no pescoço, pois fora quase estrangulada pelo sedutor. Ela vai se queixar e mostrar as manchas roxas? Não! Cobre o pescoço com cachecol, se apaixona e pede mais!!! E eu perguntaria, será que Atef não percebeu estar na mesma linha das crônicas de Nelson Rodrigues, na “Vida como ela é”, da Última Hora do Samuel Wainer, na qual se falava justamente isso, que mulher gosta de apanhar? Hoje, sabemos que isso leva ao feminicídio. Será que todas as mulheres gostam de homem violento e machão?
Margaretha von Trotta, atriz e depois realizadora de renome, nascida em Berlim em 1942, fez um filme sobre a poetisa e escritora austríaca Ingeborg Bachmann, de grande renome na língua alemã, e sobre seu casamento com o conhecido e famoso escritor suíço Max Frisch. Casamento tumultuoso do casal mais famoso da época no mundo literário de lingua alemã, que durou apenas cinco anos. Depois do divórcio, Ingeborg foi viver em Roma, onde viveu só mais dez anos. Austríaca de nascimento, ela detestava Viena, Berlim e Zurique e adorava Roma, onde havia luz e calor. A escritora não era nenhuma santa: depois de Max Frisch, realizou seu sonho de trepar com diversos homens.
Como Ingeborg queimou o diário de Frisch, no qual ele falava da relação com a esposa (também respeitada intelectual), deve ter ficado para Maragarethe utilizar no filme, imagina-se, as impressões de Ingeborg sobre o marido no casamento. O filme mostra Frisch autoritário, possessivo e ciumento, una crítica justa ou injusta, capaz de deformar ou fazer uma reavaliação da imagem do grande intelectual suíço, sem direito de defesa e debate, pois ambos já morreram (embora tenham sido contemporâneos da realizadora).
Agora não vem uma crítica, mas uma simples observação sobre o importante filme na competição, “Sobrevivência na Bondade”, no qual a personagem principal sobrevive no deserto sem água e sem comida. Imagina-se que a preocupação principal do realizador australiano Rolf de Heer não era mostrar um manual de sobrevivência, mas de fazer um filme de crítica à sociedade, no qual tomar água no deserto não entrava no roteiro, era coisa tácita e figurativa.
Outra chamada um tanto engraçada, no filme mexicano “Tótem”, de Lila Avilés, é o momento em que a família com um doente em casa e pouco dinheiro chama uma bruxa para espantar demônios e mau astral, o que ela faz de maneira evientemente enganosa com baldes e vassoura, numa cena, que reproduz a realidade, mostrando até onde vai a tolice ou a crendice humana.
Tive também a possibilidade de ver o filme de Daniel Bandeira, “Propriedade”, e lamentei não fazer parte da competição, pois teria qualidade para ganhar um prêmio, pelo tema e pela maneira como descreve a revolta numa fazenda contra o dono e seu capataz.
Teremos ainda mais alguns dias de filmes para ver e comentar com mais vagar.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.