Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Menos gente quer ser jornalista. O que o ensino tem a dizer sobre mais essa “crise”

(Foto: Microgen/Getty Images Pro)

O Emerson College é uma das mais prestigiosas escolas de jornalismo dos Estados Unidos. Vocacionada para a prática, é a principal instituição formadora de jornalistas para as emissoras de TV de Boston e arredores. Mas a solidez da instituição não tem sido páreo para a tendência observada na última década: há cada vez menos candidatos dispostos a cursar a graduação em jornalismo. A pandemia só agravou a situação. Dos habituais 150 formandos anuais, o Emerson College hoje forma pouco mais de metade desse montante, me contaram os professores da faculdade durante uma visita à instituição em fevereiro último.

Por aqui no Brasil, não é diferente. Instituições de renome, como PUC e Cásper Líbero, ambas em São Paulo, têm dificuldades para fechar turmas ou enfrentam acentuado declínio no número de candidatos. Na ponta, digamos, mais “massiva” da formação, faculdades com mensalidades a preços populares têm fechado cursos ou migrado integralmente para a modalidade a distância.

Decerto a crise econômica e a percepção de uma atividade com empregabilidade e remuneração declinantes respondem por uma parcela do decréscimo, mas o problema não se restringe ao setor privado. Na Universidade de São Paulo, a relativa estabilidade na relação candidato-vaga do curso de jornalismo esconde a diminuição da oferta – de 60 vagas para 48 e, mais recentemente, 42. Nesse caso, para aferir a demanda, o melhor indicador é o número total de vestibulandos que buscam o curso a cada ano.

Nos últimos 10 anos, há dois momentos distintos: o primeiro, de queda acentuada, vai de 2014 a 2019. O segundo, de relativa estabilidade em um patamar mais baixo, vai de 2019 até 2023. No cardápio de cursos da USP, jornalismo segue tendo uma procura relevante, na casa dos 30 candidatos por vaga. Mas há tempos deixou a lista de graduações com mais de 2 mil vestibulandos, tendo registrado entre os pontos inicial e final do gráfico – os anos de 2014 e 2023 – um decréscimo de 48% na procura (veja tabela abaixo):

Fonte: elaboração própria, com dados da Fuvest

 

 

Há dois vetores sociais relevantes. O período bate com a explosão das redes sociais e de suas dinâmicas na disseminação da informação. A “velha” mídia, ou mídia de legado ou mídia de referência – a denominação vai a gosto do freguês – perdeu espaço para a miríade de produtores de “conteúdo”, palavra ônibus que parece abarcar todo tipo de criação humana, da informação mais acurada à opinião menos abalizada, do entretenimento à divulgação científica, das séries documentais aos realities shows. 

A segunda tendência, decorrente desse primeiro movimento, é o descrédito social em relação ao jornalismo. Se a história da profissão é uma história de crises, raras vezes a a atividade jornalística e as ações de seus profissionais foram tão questionadas. A legitimidade social para o monopólio do relato sobre o real já não é mais apriorística. Os conceitos de “real” e “verdade” estão na berlinda, muitas vezes vilipendiados pelos próprios jornalistas.

Nesse contexto, o que pode o ensino de jornalismo?

Em minhas aulas, observo que muita coisa mudou. Como regra, estudantes de jornalismo já não incluem em suas dietas informacionais… veículos jornalísticos! Pode parecer contrassenso, mas futuros jornalistas hoje desconhecem o que é o jornalismo canônico. Há uma tarefa, antes dispensável, que hoje ocupa lugar central: realizar uma espécie de “alfabetização jornalística”, familiarizando o alunado com exemplos lapidares e as boas práticas da profissão. Isso exige uma interlocução cada vez mais aguda entre teoria e prática. Jornalismo se aprende fazendo, refletindo e se inspirando. O fazer depende de métodos e protocolos profissionais (volto a isso em um instante); a reflexão, da teoria (e do reconhecimento que a profissão possui, sim, ao menos em parte, caráter científico); e a inspiração de leitura, escuta, visualidade – o acesso ao vasto patrimônio do jornalismo de qualidade que, felizmente, segue sendo feito.

Eis uma outra consideração importante: uma visão catastrofista dos tempos atuais em nada nos ajudará. Em vez de uma geração desinteressada e apática, é possível enxergar em nossos alunos e nossas alunas pessoas que pensam, sentem e se posicionam na sociedade de uma maneira diferente, às vezes radicalmente diferente, de nós, professores. Quais dessas novas formas de ser e estar no mundo podem servir como estímulo renovador para as próprias práticas jornalísticas? Que possibilidades podemos imaginar para a atuação profissional? Por outro lado, quais fronteiras entre o jornalístico e o não-jornalístico podem ser redesenhadas – e quais não podem ou não deveriam? Temos sido tímidos na criação de soluções e na proposição de alternativas à “crise” da profissão. Faz pouco sentido, pois a universidade é, ou deveria ser, justamente o lugar da experimentação, do erro e da reflexão sobre ele, da inovação.

Penso, por fim, que é preciso não perder de vista o caráter profissional de nossa profissão. O aparente pleonasmo revela uma verdade incômoda: quantos de nós muitas vezes consideramos o jornalismo como um ofício que se aprende “no dia a dia do trabalho”, que talvez sequer precise de diploma? As Diretrizes Nacionais Curriculares (DCNs) do curso, implementadas em 2013, deram um passo enorme ao reforçar o caráter do jornalismo como campo científico autônomo, e a profissão como um conjunto dinâmico de valores e práticas codificadas. 

Dizer que tais práticas, e talvez as próprias DCNs, precisem de renovação não significa desconsiderar o trabalho feito até aqui. Por meio do diálogo, pode-se buscar consensos e realizar a defesa da especificidade do fazer jornalístico. Passada por ora a ameaça fascista, se abre uma janela de oportunidade para uma atualização do “que” e do “como” ensinar. Revisar para reforçar os valores e as práticas do jornalismo como serviço público central para a vida em sociedade. Será mais produtiva a tarefa que se ampare no que nossos mestres e nossas mestras fizeram até aqui. Que se apoie sobre os ombros de gigantes.

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Rodrigo Ratier é professor de jornalismo da USP e diretor de relações institucionais da Abej