El Salvador é (ainda é?) uma democracia. Enfim, uma democracia mais ou menos à moda de seus vizinhos: Guatemala, Nicarágua e Honduras. Os chefes de Estado são (ainda são?), nesses países, resultado de processos eleitorais. No entanto, as partituras democráticas nem sempre seguem as “claves de sol” das liberdades públicas, de opinião e de imprensa, nem o “fá” do equilíbrio dos poderes.
O primeiro magistrado salvadorenho, Nayib Bukele Ortez, foi eleito, brilhantemente, em 3 de fevereiro de 2019. Contudo, a voz das urnas salvadorenhas, como aquela do Senhor, é cada vez menos transitável entre sucessivas lombadas e buracos antiliberais.
A leitura dos eventos atuais confirma a impressão de uma democracia ao pôr-do-sol. O chefe de Estado, Nayib Bukele, inaugurou em 31 de janeiro de 2023 um prédio insólito, a 74 quilômetros da capital, em Tecoluca, perto do vulcão Chichontepec [1]. Insólito, em razão do tamanho de seu país, já que El Salvador é um dos países mais modestos da América Latina. Sua superfície de 20.742 quilômetros quadrados equivale à extensão do menor estado do Brasil, Sergipe. Sua população é da mesma ordem de grandeza, 6.500.000 habitantes. O edifício tinindo de novo e que foi inaugurado, com grande pompa e ostentação, no último 31 de janeiro é o maior do gênero no mundo. Pasmem ou não, o edifício é um presídio. Ele foi batizado de “Centro de detenção de terroristas”, contando com 43 hectares e capaz de “alojar” 40 000 detentos. Trata-se de uma prisão modular, ou seja, expansível, ainda mais se considerado o espaço total que lhe foi reservado de aproximadamente de 70 hectares.
Essa inauguração representa o ápice de uma política de segurança da mesma “ordem”. A prisão é dividida em celas de 100 m² com capacidade para “alojar” 100 detentos. Ela não foi equipada nem com pátio de acesso ao ar livre, nem com espaços conjugais. Nela serão mantidos presos verdadeiros troféus humanos, que têm sido caçados por soldados e policiais há vários meses. Os suspeitos apanhados em uma dessas sucessivas investidas policiais, nem todos julgados e condenados, estão, por via das dúvidas, todos encarcerados. O presidente, em 5 de abril de 2022, ameaçou mantê-los à base de pão e água de modo a pressionar o restante deles, ainda em liberdade. Ao final, a caça foi boa, do ponto de vista policial, mesmo que muitos erros tenham sido cometidos durante essas operações de rastreio. A única nota em bemol, segundo o ponto de vista da presidência, era a de que os presídios do país foram rapidamente superlotados, já que não se podia simplesmente deslocar suas paredes divisórias. Diante de tal problema, tomou-se a decisão, em plena conformidade com o espírito democrático segundo a visão das autoridades, de construir essa estrutura prisional monstruosa, gigantesca, fora de qualquer padrão.
Ninguém no país contesta, é óbvio, a necessidade de se combater a insegurança. El Salvador foi, durante anos, um dos países mais perigosos do mundo. Foi, por muito tempo, flagelado por uma guerra civil sangrenta de 1980 a 1992. Incapaz de absorver os combatentes de ambos os lados, o mercado de trabalho fabricou pessoas sem remuneração, que rapidamente caíram na delinquência. A expulsão, por parte dos Estados Unidos, de jovens salvadorenhos ou filhos de migrantes salvadorenhos que tinham cometido crimes em território norte-americano, multiplicou a violência. Essas vítimas da dupla pena importaram a cultura das gangues organizadas de tatuados e sectários. Isso mergulhou o país no caos. Em 2015, a taxa de homicídio registrada foi uma das mais elevadas, 105 por 100.000 habitantes. Este caos é relativamente bem conhecido graças aos documentários sobre esses grupos, os maras, realizado por Christian Poveda e Gary Jogi Fukunaga [2].
Nayib Bukele foi eleito e reeleito sob a promessa de limpar, com rigor e vigor, as ruas da capital. Parece que isso já foi feito. De acordo com os últimos números publicados pela polícia nacional, os homicídios registrados teriam caído 80,4% de janeiro de 2022 a janeiro de 2023 [3]. Mas a que custo? Isso custou o preço da democracia, é claro. O país vive em um estado de emergência desde 27 de março de 2022, prolongado a cada trinta dias pelo Parlamento. Desde então, os seguintes direitos foram suspensos: liberdade de associação e reunião, confidencialidade das comunicações, justificação das detenções, prazo de apresentação do réu perante um juiz, estendido de 72 horas para 15 dias. As agências de aplicação da lei e da ordem têm plenos poderes para prender sem ter que justificar. Atualmente, 64.000 pessoas estão encarceradas. El Salvador é um dos países com a taxa de detenção mais elevada do mundo: 1.536 por 100.000 habitantes.
O método se espalhou. É aplicado em outras áreas da vida política e social. Com ou sem razão, isso importa menos, o Parlamento foi forçado manu militari, no bom latim, com o uso da força militar, no bom português, a votar na direção que o presidente queria. Acabaram-se os debates e a separação de poderes. Em 9 de fevereiro de 2020, Nayib Bukele, invadiu a sala de sessões da Assembleia Legislativa ao som de uma marcha militar, acompanhado de soldados apontando armas para os deputados que, inclusive, tinham votado segundo o esperado pelo Chefe de Estado. A Câmara, eleita em 2021, destituiu cinco juízes do Supremo Tribunal sem nenhuma base constitucional. Uma lei que exige a aposentaria de juízes a partir dos 60 anos permitiu o despejo de um terço dos magistrados. O Procurador-Geral da República foi também demitido. O Tribunal, assim renovado, deu ao Chefe de Estado, em 15 de setembro de 2021, a possibilidade de se reeleger, apesar de uma proibição constitucional, contida no artigo 154 da Lei Fundamental. As forças armadas foram mobilizadas em março de 2022 para assumir o controle de uma empresa de transportes de passageiros que tinha aumentado as suas tarifas, a despeito de uma orientação presidencial contrária. Essa situação de “paz sem justiça”, de acordo com o jornalista independente Óscar Martínez [4], preocupou a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH). Em outubro de 2022, ela solicitou explicações a El Salvador e até agora não recebeu qualquer resposta das autoridades.
Segundo uma pesquisa, os salvadorenhos aprovam os métodos democráticos poucos ortodoxos de seu presidente. Esta pesquisa (CID Gallup) de outubro de 2022 sinaliza, com efeito, que o presidente Nayib Bukele é apoiado por 86% da população. O partido presidencial venceu facilmente as eleições legislativas de 28 de fevereiro de 2021 com 66% dos votos válidos e obteve 56 cadeiras de deputados das 84 disponíveis. As razões profundas dessa adesão, para além do tema da segurança e da conjuntura política, são para os democratas convictos mais do que preocupantes. Essas razões estão, de fato, se espalhando de um continente a outro e muito além da América Latina.
Há obviamente os potentados clássicos, à antiga, como o da família Ortega na Nicarágua, por exemplo. Há também aqueles que, movidos pela sedução do ganho fácil elevado à máxima potência, realizam para fins próprios e privados o sonho comunista ou anarquista de acabar com o Estado. É o caso da situação atual do Haiti, um país efetivamente sem democracia e também sem Estado. As virtudes da eficiência e de seus atalhos institucionalmente encurtados são reivindicadas e por vezes sedutoras. Da China à Rússia, passando por Benin, pela Hungria, Ruanda, Turquia e Tunísia, assiste-se a uma progressão de regimes reivindicando a validade e a relevância de “Reis filósofos”, que seriam os portadores de Nuevas ideas (novas ideias), nome de um partido oportunista, fundado por Nayib Bukele e seu primo Xavier, algumas semanas antes das eleições presidenciais de 2019.
Texto publicado originalmente em francês, em 20 de fevereiro de 2023, no site Nouveaux Espaces Latinos, seção Actualités, Paris/França, com o título original, “Démocratie à la sauce Bukele”. Disponível em aqui. Tradução de Pâmela Rosin e Luzmara Curcino.
Notas
[1] NT.: Também conhecido como San Vicente.
[2] La vida loca (2009) par Christian Poveda et Sin nombre (2009) de Gary Joji Fukunaga.
[3] In.: GALDAMEZ, Eddie. El Salvador Info, 13 fevereiro 2023.
[4] MARTÍNEZ, Óscar, jornalista de El Faro, in BBC Mundo, 25 janeiro 2023.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.