Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O quase fim da segregação social

(Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

O decreto assinado por Lula garantindo que 30% dos cargos e funções públicas de confiança sejam preenchidos por negros constitui uma verdadeira revolução administrativa dentro do Brasil, que se poderia sem exagero se comparar ao quase fim do apartheid da população negra no Brasil.

Embora a negritude represente 54% da população brasileira segundo o último censo do IBGE, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco estima ser de menos de 5% a existência de cargos comissionados ocupados por negros. Esse reconhecimento real da população negra deverá ser também efetivo no acesso ao ensino superior, segundo últimas declarações do presidente em favor do aumento de bolsas para estudantes negros e do número de vagas nas universidades.

Isso significa uma gradativa transformação dentro da população brasileira com o acesso dos jovens negros ao exercício de profissões até agora ocupadas apenas por profissionais brancos. A disparidade entre a população negra e branca fica evidente com dados recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, pelos quais as mulheres brancas recebem 70% a mais que as mulheres negras.

Outros estudos também mostram uma inferioridade da população negra em comparação com os brancos, em termos de moradia, alimentação, moradias, acesso à saúde, a atividades culturais, criando uma espécie de apartheid, no qual os negros convivem com os brancos, porém quase sempre em condições inferiores.

Os recentes casos de trabalho escravo localizados em viniculturas em Bento Gonçalves mostraram ainda existir esse tipo de exploração no Brasil, embora em número bem reduzido. Entretanto, é ainda grande o número de trabalhadores, na maioria negros, em situação de uma quase escravidão com salários miseráveis.

De Miguel Urbano Rodrigues à cidade de Santos

De volta ao Brasil por três meses, para compensar minha longa ausência durante a crise sanitária do Covid, foi por acaso que me deparei com o livro de Miguel Urbano Rodrigues, “Opções da Revolução na América Latina”, editado pela Paz & Terra.

Algum tempo depois da morte de meu pai, minha mãe decidiu deixar a cidade de Santos e retornar à sua cidade natal, no interior de São Paulo, e levou consigo, na mudança, meus livros que ficaram espalhados quando deixei o Brasil em 1969.

O livro me fez lembrar não só a figura do amigo editorialista principal do jornal Estadão, naqueles meus primeiros anos de jornalismo, mas sua influência, pois fazia parte do pequeno grupo existente dentro da Redação, ao qual me integrei, de oposicionistas à ditadura militar, jornalistas experientes, combativos com os quais muito aprendi.

Essas recordações se tornaram mais fortes com minha vinda, desta vez como simples turista, a Santos, cidade onde vivi desde meus dois anos até o fim do serviço militar.

O conhecimento da existência de uma outra maneira de pensar a realidade social me veio muito cedo, nesta cidade para onde meu pai nos trouxe em busca de trabalho. No Morro de São Bento, onde vivíamos, logo depois da queda da ditadura de Vargas, os comunistas eram ativos e promoviam festas populares com discursos de seus líderes.

Meu pai lia o jornal “Notícias de Hoje” e íamos ouvir os candidatos João Taibo Cadorniga e Zuleika Alambert para deputado estadual. Apesar de ter apenas 8 anos, lembro-me bem dessa época. A Câmara Municipal de Santos elegeu uma maioria de vereadores comunistas e a cidade chegou a ser chamada de Santos, a Vermelha!

Zuleika Alambert foi eleita primeira-suplente a deputada estadual e se tornou assim uma precursora das deputadas mulheres que surgiram mais tarde. Tanto João Taibo como Zuleika tiveram seus mandatos cassados, em 1948, oito meses depois do PCB ter sido colocado na ilegalidade. Foram também cassados todos os vereadores marxistas de Santos, inclusive nosso dentista, Antônio Moreira, em cujo consultório havia uma foto do Luís Carlos Prestes.

Lembranças que me chegam, neste reencontro com Santos, de minha precoce descoberta da política.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de LisboaCorreio do Brasil e RFI.