Nosso Brasilzão é o segundo país mais injusto do mundo, considerando-se a distribuição de renda, perdendo só para Serra Leoa, na África. Levantamento do Banco Central mostra que os bancos lucraram na terra brasilis 6,335 bilhões de reais no primeiro trimestre deste ano, ‘só’ 52% a mais do que o registrado no mesmo período do ano passado. Mensalões de 30 mil reais rolando soltos no Planalto Central (e por aí afora…) e chantagens e mais chantagens de Robertos Jeffersons & cupinchas.
Enquanto isso, bacanas e mais bacanas, quase todos protagonistas das notícias, deleitam-se com mimos, champanhe e brioches durante a inauguração da Daslu, em São Paulo, num festival de hipocrisia e insensibilidade – vale a pena lembrar que muitos desses bacanas são CEOs ou diretores de grandes empresas que se dizem fortemente empenhadas em programas de ‘responsabilidade social’…
Ainda durante a finalização da megaloja paulistana, a repórter Célia Chaim foi direta, em reportagem para a o site NoMínimo: ‘A classe operária ergue o paraíso’. Só o comecinho da matéria:
Seu Jorge, o que é essa construção aí?
– É um shopping, moça, uma coisa que eu nunca vi na minha vida. Coisa de luxo mesmo, pobre não vai passar nem na avenida. E como tem mulher bonita entrando e saindo no meio dessas obras! Nunca vi também.
Nunca a letra de Cidadão, do Zé Geraldo, foi tão cruelmente fiel à realidade. A colunista Mônica Bergamo resumiu, na Folha de S.Paulo:
[…] o maior templo de consumo do país. Ali, em quatro andares e 20 mil m2, serão vendidos, a partir de quarta [8], 120 marcas com produtos que vão de uma caixa de band-aid por R$ 3,99 a uma ilha em Angra por R$ 8 milhões.
Cláudio, Bertold
Mas, às vésperas da inauguração e do rega-bofe daslusiano, um episódio que seria quase corriqueiro ganha ares inusitados e ameaça tirar parte do brilho dos paetês: um caminhão que trazia, do porto de Santos, um carregamento especial com produtos da marca Burberry para a Daslu, é roubado. Coisa de 1,3 milhão de reais em roupitchas…
Ato contínuo, o representante da Burberry no Brasil aciona um esquema de emergência para que uma nova carga chegue a tempo da festança. E declara à imprensa o que seria o fim do mundo: ‘Imagine a Daslu inaugurar sem a nossa coleção?’
Assalto, seguido de declaração tão emocionada e pungente, só ativou a verve ferina do jornalista Xico Sá. No seu Carapuceiro, tascou uma antológica ‘Carta aberta aos assaltantes do caminhão da Daslu’:
Parabéns, corajosos cabróns. Ali vocês não estavam metendo as mãos apenas em um caminhão cheio de bolsas capazes de sustentar milhares de lascados, verdadeiras e materializadas bolsas-família de fato. Não. Foi uma tomada simbólica da Bastilha no país dos banguelas.
Nada, porém, que ofuscasse a pândega miliardária às margens do rio Pinheiros, em São Paulo. Helicópteros e carrões exclusivos, importados e blindados, congestionaram por um fim de semana inteiro as imediações, num espetáculo que fez os editores de revistas de celebridades gozarem de prazer.
À patuléia, resta saborear as fotos da Caras & revistas afins, instigada subliminarmente a escaladas sociais ou tomadas da Bastilha. O clima pesado que paira por esses dias não é lá muito animador.
Vale fechar com o diagnóstico do jornalista Cláudio Abramo (1923-1987) em A regra do jogo (Companhia das Letras, 7ª reimp., 2002, ):
‘O Brasil é um país colonial, canalha, dominado por uma burguesia canalha; se o sujeito não for hipócrita, não concordar, não der um jeito, está liquidado.’
Com um código moral desses, restam poucas esperanças. Mas sempre haverá assaltantes de caminhões da Daslu… Parafraseando Bertold Brecht, ‘o que significa roubar um caminhão da Daslu diante da abertura de uma loja como a Daslu?
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Jornalista, editor do Alfarrábio