Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como massacrar uma mulher

Em 28 de janeiro deste ano, os dois maiores jornais do Distrito Federal – Correio Braziliense e Jornal de Brasília – deram na primeira página mais ou menos a mesma manchete: Adriana, filha do casal Villela, foi novamente presa pela polícia. Desta vez no Rio de Janeiro, onde passava férias.

Antes de analisar a cobertura jornalística dessa história escabrosa, cabe um resumo os fatos para quem não os conhece. No dia 28 de agosto de 2009, o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral José Guilherme Villela e sua mulher Maria Carvalho Mendes Villela (pais de Adriana), e ainda Francisca Nascimento da Silva (empregada), foram mortos a facadas no apartamento do casal, em Brasília. Em agosto de 2010 Adriana foi presa, acusada de atrapalhar as investigações. E agora, presa novamente sob a mesma acusação (foi solta por habeas corpus 22 horas depois).

Jornalismo é duvidar

A história, do ponto de vista jornalístico, é extremamente rica. É o tipo de pauta que rende boas matérias. O problema é que a cobertura está repleta de erros. E erros crassos do jornalismo. O principal deles é adotar a polícia como única fonte de informações. É um erro que denota:

1. Preguiça – o repórter opta por fazer a matéria dispensando a sua apuração;

2. Submissão – o repórter se submete à autoridade. E se a autoridade tem uma tese é esta que prevalece, pois o repórter se torna seu porta-voz. Eis a imprensa prisioneira de uma linha de cobertura determinada pela polícia;

3. Dispensa da verdade – buscar a verdade é uma dos princípios do jornalismo. Quando o jornalista opta por uma única fonte, deixa de buscar a verdade e, claro, deixa de fazer jornalismo;

4. Medo – o repórter teme perder informes importantes da polícia. Prefere se submeter à fonte oficial a ‘não ter nada’. Em outros termos: como o repórter não vai apurar, investigar, questionar, isto é, fazer o que lhe compete enquanto repórter, para não deixar a página em branco, decide por encher o espaço com a fala da autoridade.

Os jornalistas que estão cobrindo o caso (salvo exceções) apenas reproduzem a tese da fonte. E, desse modo, fazem o massacre público de uma pessoa, Adriana Villela.

Alguns estudiosos do jornalismo, como Wolf, Wolton e Traquina, alertam para o enquadramento do jornalista pela fonte. A fonte determina o recorte e o enquadramento. Na matéria aparecem vários enunciadores, mas eles apenas ratificam o enquadramento antecipado estabelecido pelo repórter ou pelo jornal. Isto é, o advogado de defesa de Adriana é ouvido apenas para dizer que sua cliente é inocente. O que diria qualquer advogado que defendesse alguém acusado de qualquer crime. A intenção é iludir o leitor, fazendo-o crer que as partes foram ouvidas.

De fato, as partes foram ouvidas, mas a fala do advogado de Adriana é sempre para defendê-la da tese exposta pela polícia de que ela é mandante do crime. Uma tese sustentada pelo jornal. E o jornal deveria questionar as teses da polícia? Claro que sim. É obrigação do jornalismo questionar os envolvidos. Colocar a polícia contra o advogado não é jornalismo. Jornalismo é duvidar.

Fontes independentes são mais confiáveis

Fazer jornalismo é buscar a verdade e relatar o que encontrou. É investigar, apurar, procurar, e, principalmente duvidar. Jornalista desconfia. Desconfia da polícia, do promotor, do Ministério Público, do juiz, de Adriana e do seu advogado. É o seu papel desconfiar. Deve desconfiar porque está buscando a verdade e as fontes, sejam oficiais ou não, podem estar enganadas. Quando um jornalista ouve uma fonte oficial, uma autoridade, e coloca no jornal o que ela disse sem duvidar, indagar, deixa de ser jornalista para ser porta-voz dessa fonte.

Há uma outra questão envolvendo tudo isso. O jornal não pode simplesmente reproduzir a fala da polícia acusando seja lá quem for e depois ouvir essa pessoa como se fosse a coisa mais natural do mundo. A polícia fala por uma instituição, o acusado é uma pessoa. Quando a polícia diz que fulano é culpado disso ou daquilo ela está, de certa forma, expressando um julgamento. Ela ‘julgou’ (a partir das suas investigações) a pessoa, considerando-a culpada. É claro, quem vai dar o veredicto final é o juiz, mas diante da opinião pública, quando apenas acusa, ela expressa um julgamento.

Um jornal, portanto, não pode ser irresponsável e se tornar porta-voz da polícia, tornando público o parecer sobre determinado caso sem antes apurar, indagar, questionar, duvidar. A polícia tem uma presença simbólica na população e o seu discurso, sua fala, é recebido muitas vezes como verdade absoluta. Ela acerta, mas também erra – como nesse caso de Adriana Villela. E a população tende a acreditar que ela ‘nunca’ erra. Sobre as fontes, o jornalista José Cleves, ele também um massacrado pelos colegas da imprensa (depois de acusado pela polícia de um crime que não cometeu), ensina que para o jornalismo investigativo, as fontes independentes são as mais confiáveis.

Sem questionar

O que espanta é que essa é uma grande história e ela não está sendo devidamente contada. Para quem não conhece, listo alguns fatos que se sucederam ao crime.

** Outubro, 2009 – Uma paranormal, Maria Rosa Jaques, que mora em Porto Alegre, vem a Brasília, vai à 1ª Delegacia de Polícia (DP), que investiga o crime. Lá, teria indicado a casa dos assassinos. A polícia vai ao local e prende dois homens com as chaves do apartamento das vítimas.

** Abril, 2010 – Mas as chaves teriam sido levadas pela própria delegada, Martha Vargas, para forjar o crime. A delegada é indiciada em processo e os dois homens (soltos depois de um mês na cadeia), dizem que foram torturados (a imprensa não apurou). O caso vai para outra delegacia.

** Abril, 2010 – A polícia agora acha que Adriana é co-autora do assassinato dos pais.

** Agosto, 2010 – Adriana é presa com mais quatro pessoas, incluindo a paranormal, acusada de atrapalhar as investigações: ela teria ‘contratado’ a paranormal, que teria conseguido enganar a delegada, que teria plantado as chaves. Um agente da polícia teria colaborado com Adriana.

** Janeiro, 2011 – Adriana é presa novamente. O Correio Braziliense (28/01/2011) expõe sua foto na capa, medindo 14,5 x 12 cm com a manchete: ‘Presa, de novo’.

Mais uma vez Adriana, uma arquiteta que não tem passagem pela polícia, nunca esteve envolvida em nenhuma espécie crime, é acusada de atrapalhar a Justiça. Pela segunda vez, ela teria aliciado agentes da polícia de uma outra delegacia. Nisso parecem acreditar o Ministério Público e a Justiça de Brasília, que a mandaram prender duas vezes.

Ela deve ser muito poderosa, para comprar por duas vezes agentes da polícia, e de delegacias distintas! E a sua capacidade de bolar planos? A polícia e, pelo visto, o Ministério Público do DF, acreditam até que ela teria incluído uma pessoa com poderes paranormais na história para confundir a polícia. Uau! Essa é uma das estratégias mais esquisitas para burlar a lei já criada por um ‘assassino’. Adriana nega tudo, claro. Mas as autoridades locais acreditam que foi assim que tudo aconteceu. E os jornais de Brasília aceitaram isso? Sim. Aceitaram a fala das autoridades sem questionar.

Ex-porteiro confessa o crime

Diz José Cleves, no seu livro A justiça dos lobos: por que a imprensa tomou o meu lugar no banco dos réus (Belo Horizonte: Biográfica, 2009):

‘É obrigação do jornalista apurar, por exemplo, se são verdadeiros os dados oficiais de uma denúncia. Ele não pode apenas relatar o que lhe foi dito, seja a palavra de um cidadão comum ou a do presidente da República. Havendo dúvida tem que investigar’ (p. 173).

E diz mais:

‘O jornalista irresponsável, respaldado pela direção dos veículos, é aquele que se anula nesse processo bipolar de busca da verdade, pela comodidade dos argumentos oficiais, proclamando inocentes e culpados com a mesma facilidade com que criam falsos mitos e fabricam falsos ídolos’ (p. 166).

Mas a ficção não acaba aí. Tem mais histórias…

** Novembro, 2010 – Leonardo Campos Alves, ex-porteiro do prédio em que moravam os pais de Adriana, é preso em Montalvânia (MG) por agentes de uma outra delegacia (8ª DP) de Brasília. Em depoimento à polícia, Leonardo confessa o crime e deixa claro que não houve mandante. Diz ele que a filha do casal, Adriana Villela, a quem conhecia do tempo em que trabalhava lá, não tem nada a ver com a história. Ele fala isso para a imprensa de Brasília. Está escrito, está gravado.

Imprensa não faz jornalismo

Mas quem cuida do caso não é a 8ª DP. A investigação está a cargo de outro departamento da polícia civil, a Coordenação de Crimes contra a Vida (Corvida), que sustenta que Adriana foi a mandante do crime. O assassino é enviado para a Corvida. Dias depois acontece um fenômeno: Leonardo muda sua versão. Agora ele diz que Adriana foi a mandante.

Por que mudou a versão? Nunca ficou claro. A imprensa não questionou como um assassino confesso muda sua versão depois que muda de delegacia. Será uma coincidência que Leonardo adote a versão da delegacia onde está preso? Um jornalista que cobrisse o caso criaria teses para entender o porquê do assassino mudar de versão: 1) foi torturado? 2) incluiu Adriana Villela para ter redução de pena? 3) não estava lembrado da participação dela? 4) mentiu antes por algum motivo?

A imprensa brasiliense, porém, optou pelo silêncio misericordioso, não questionando o fato. Mas o silêncio da imprensa local não é de hoje. Por exemplo, há muito se fala que as roupas das vítimas (elemento fundamental nas investigações) teriam sido incineradas no IML. É verdade? Quem fez isso? É rotina incinerar roupas? Quem mandou? A imprensa não foi atrás. O advogado de Adriana denunciou que depoimentos sumiram dentro da delegacia. É verdade? Quem fez? Etc. A imprensa não foi atrás. Mais um exemplo. Diz Adriana Villela que, depondo na delegacia, há muito tempo, apontou o ex-porteiro como suspeito, mas a polícia não teria investigado. Ora, esta informação é crucial. Se ela fosse mandante, não indicaria como suspeito seus contratados. Outra coisa. Se isso for verdade, por que a polícia não investigou? A imprensa não sabe dizer. Não sabe dizer porque a imprensa não faz jornalismo.

Pior do que a morte física

O que mais se tem visto no Correio Braziliense é a reprodução de documentos (depoimentos e laudos) que o jornal obtém ‘com exclusividade’ dentro da polícia. Essa exclusividade na obtenção de documento apenas revela uma perigosa intimidade entre a imprensa e a polícia, não dá qualidade ao jornalismo. Jornalismo é apuração, e não exposição de documentos fornecidos pela fonte. Aliás, a Justiça deveria agir porque o processo está sob segredo de Justiça, mas, com a ajuda de gente dentro da polícia, o Correio Braziliense parece estar violentando esta decisão judicial.

Os erros de jornalismo seriam de menor importância caso não tivéssemos uma pessoa e uma família sendo massacradas pela cobertura de parte da imprensa local. Um massacre que fere a ética. Vamos aplicar o Código de Ética dos jornalistas a essa cobertura. Diz o texto:

Art. 6º É dever do jornalista:

VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão.

Colocar a foto de uma pessoa na primeira página, com a manchete citada, é uma forma invadir a sua privacidade, ofender a sua honra e dignidade. Quem faz jornalismo sabe (ou deveria saber) o que diz este simbólico para a população: ‘Adriana Villela matou os pais e foi presa de novo’. Questão de semiótica: o jornal julgou e condenou-a. Esta é uma leitura evidente do leitor. E os editores sabem disso. Se não sabem é porque estão no lugar errado.

E o jornalista nem pode dizer que apenas reproduziu a fala da autoridade. O texto jornalístico é responsabilidade de quem assina. Diz o Código de ética da nossa categoria:

‘Art. 8º O jornalista é responsável por toda a informação que divulga, desde que seu trabalho não tenha sido alterado por terceiros, caso em que a responsabilidade pela alteração será de seu autor.’

Nós, jornalistas, devemos estar cientes de que um texto jornalístico pode matar moralmente uma pessoa, uma família, um grupo – e uma morte moral pode ser pior do que a morte física porque ela vem junto com a tortura psicológica feita publicamente.

Erro da imprensa pode perpetuar a impunidade

O Código de Ética pede responsabilidade por parte de quem escreve e ensina quanto às fontes:

‘Art. 10. A opinião manifestada em meios de informação deve ser exercida com responsabilidade.

Art. 12. O jornalista deve:

I – ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas.’

Nada disso está sendo respeitado pelos jornais locais e, em especial, pelo Correio Braziliense. Continuam errando.

Sintetiza José Cleves:

‘Qualquer erro da imprensa pode perpetuar a impunidade ou a injustiça, motivo pelo qual nunca se deve abdicar da independência jornalística, sob pena de se distanciar da verdade’ (p. 166).

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Jornalista, mestre em Comunicação pela UnB e autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias