Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ombudsman, o exercício da solidão





Canal de comunicação entre o leitor e o jornal, o
ombudsman não se restringe a elaborar erratas ou fazer a crítica interna de uma
publicação. É a voz por meio da qual a população pode reclamar e opinar sobre a
conduta do veículo. No segundo episódio da série de programas gravados na
Espanha, o Observatório da Imprensa, da TV Brasil, exibiu na terça-feira
(8/2) uma entrevista de Alberto Dines com a ombudsman do jornal El País,
a jornalista Milagros Pérez Oliva. The New York Times, The Washington
Post
, Le Monde e The Guardian são exemplos de impressos que
também adotam o
ombudsman em suas redações. Dos maiores diários brasileiros,
apenas a Folha de S.Paulo – pioneira na América Latina – e O Povo
(Fortaleza, CE) contam com um ouvidor em seus quadros.

Na Espanha, a função é batizada de ‘Defensor del lector’. Desde que o cargo
foi instituído, em 1985, dez jornalistas já ocuparam a função no El País.
Durante o mandato, os profissionais têm a prerrogativa de realizar investigações
internas para esclarecer dúvidas dos leitores. Este mês, Milagros completa dois
anos no cargo. Há mais de 25 anos em El País, Milagros foi redatora-chefe
por mais de uma década e encarregada de idealizar e coordenar o caderno mensal
de saúde da publicação. Professora da Escuela de Periodismo UAM-ELPAÍS, Milagros
se destacou por sua atividade na área de deontologia.


A função de ouvidor, na avaliação de Dines, é uma das mais importantes em um
jornal moderno. ‘É a que confere legitimidade à imprensa porque é o freio ao
contrapoder exercido pela imprensa’, avaliou. Na abertura da entrevista, Dines
perguntou como Milagros se sente realizando esta tarefa na qual se pode acumular
inimigos. ‘Não é fácil, mas é muito interessante’, disse a jornalista. Milagros
destacou que o cargo é cercado por muitas responsabilidades, mas também é uma
oportunidade de observar ‘a outra face’: ‘Me permite ver como os leitores julgam
nosso trabalho e é um ensinamento extraordinário’, sublinhou.


Aprender com os erros


Dines questionou se as críticas dos leitores chegam a promover mudanças
concretas no trabalho dos jornalistas. ‘É muito doloroso para uma pessoa que
cometeu um erro aparecer publicamente, ter seu nome e seu erro mostrados com
luzes de neon num artigo dominical, que é o dia de maior circulação, numa das
páginas mais nobres do jornal’, explicou Milagros. A ouvidora do El País
contou que procura ser respeitosa no cumprimento da função porque o capital mais
importante de um jornalista é a sua credibilidade. ‘É injusto que às vezes, por
um erro, se possa manchar uma longa trajetória profissional’, ressaltou. Nesse
aspecto, Milagros tenta refletir sobre as causas do erro e quais falhas nos
mecanismos de controle de qualidade permitiram que ocorresse. O objetivo
principal não é punir o jornalista, mas aprender com erro e, assim, promover um
avanço na qualidade da publicação.


Para a ouvidora do El País, poucos jornais instituem ombudsman porque
o ouvidor é visto como uma figura incômoda. Além disso, a imprensa se considera
um ‘poder intocável’. Quando a sociedade civil critica a atuação ou o
partidarismo da imprensa, esta acusa os que a criticam de querer dominá-la e
atentar contra a liberdade de expressão. ‘Eu acho que a imprensa necessita da
crítica social porque sua função é muito importante na sociedade moderna e na
democracia. É um pilar da democracia. Eu acho que essa postura da própria
imprensa, como um poder inquestionável, nos prejudica muito. E muitos meios
ainda estão situados nessa ‘poltrona’ de que ‘nós somos intocáveis’ e se
protegem na liberdade de expressão e na liberdade de informação para não admitir
que há coisas que poderiam fazer melhor’, afirmou.


Na opinião de Milagros, a figura do ombudsman não pode ser apenas
‘decorativa’, um artifício para o jornal alegar que cumpre com as regras de
transparência. A jornalista garantiu que El País obedece escrupulosamente
às normas do Estatuto do Ombudsman. A direção não pressiona o ouvidor, sequer
comenta informalmente as colunas nos corredores da empresa. ‘Ao contrário,
sempre tive a máxima receptividade quando dirigi a eles pedindo-lhes explicações
sobre um assunto. E acho que isto é fundamental, porque se não é assim, não é
possível exercer [o cargo]’, disse. Milagros considera a falta de
feedback da direção da publicação como uma virtude.


Absoluto inatingível


‘A dificuldade principal deste cargo, no meu ponto de vista, é que combina
duas coisas que são ‘mortais’ no jornalismo. Uma, é que é absolutamente
solitário. O ombudsman não pode pedir conselho, não pode pedir nada. Está
sozinho com sua decisão de quais casos publica, como os publica e como os
resolve. Ele está absolutamente sozinho. E a segunda característica é que, ao
contrário, tem uma visibilidade extraordinária. Ou seja, máxima solidão e máxima
visibilidade. Isso é terrível’, contou Milagros.


Milagros disse que nunca sofreu nenhum tipo de revanche ou vingança e
defendeu a independência do ouvidor: ‘Isto faz parte do contrato implícito do
que significa ter esta figura. Se você quer ter esta figura e quer tê-la de
verdade, não pode ter uma pessoa escrava das ameaças, não pode ter uma pessoa
que pense que logo vai sofrer represálias’. A linha editorial do El País
sobre a política José Luis Rodríguez Zapatero, presidente do governo da Espanha
(cargo equivalente ao de primeiro-ministro) foi um dos temas delicados que
Milagros tratou em suas colunas. ‘Chegaram a mim muitas cartas de leitores
perguntando se El País havia mudado sua linha editorial em represália ao
governo porque este havia tomado decisões que supostamente prejudicavam o grupo
PRISA. Um ombudsman que recebe essas cartas sobre um tema tão central e tão
nuclear não pode fazer sua coluna dominical sobre erros de ortografia’,
exemplificou.


Dines comentou que por ser um jornal global, El País tem o desafio de
tentar atender a exigências de leitores de diversos países. Milagros
contou que após a morte do ex-presidente da Argentina Néstor Kirchner, o jornal
recebeu uma avalanche de críticas. Para muitos leitores argentinos, El
País
não deveria ter publicado artigos expondo as ‘sombras da figura de
Kirchner’ logo após a morte de seu ‘herói’. ‘Há uma questão que é difícil de
administrar: vivemos na cultura do imediatismo. E cada vez mais. Então, qualquer
pessoa acha que aquilo que está lendo naquele momento é o absoluto. Não nos
referimos ao que dissemos ontem ou ao que vamos dizer amanhã. Aquilo é absoluto.
Se aquela informação me desagradou, faço um juízo absoluto de todo o jornal: ‘Já
não compro mais El País’, ‘El País me desapontou’’, disse.
Milagros afirmou que a objetividade absoluta não existe, mas que os jornalistas
devem sempre buscá-la.


Críticas na peneira


Outra dificuldade que Milagros enfrenta é selecionar as reclamações que o
jornal irá aceitar. ‘Por um lado, tenho críticas de leitores que se queixam de
que El País não tem sido suficientemente imparcial num determinado
assunto, que seja a política de [Hugo] Chávez na Venezuela ou a política
do [ex-presidente] Lula. Ao mesmo tempo, tenho uma série de leitores que
me pedem que El País se pronuncie mais abertamente a favor ou contra uma
coisa.’ E entre os leitores que pedem ‘o máximo compromisso’ do jornal com uma
causa, há ainda diferentes correntes ideológicas impossíveis de conciliar.


Dines colocou em questão a relação entre jornalistas e as fontes e a
proliferação de assessorias de imprensa. Ao longo de sua experiência de 25 anos
de jornalismo, a ombudsman observou que exercia cada vez menos controle sobre o
que publicava e gradativamente se afastava das fontes. ‘Uma grande parte da
informação que nos chega agora não é mais uma informação próxima. É uma
informação que pode ter partido do Banco Mundial, da Universidade de Wisconsin,
em muitos lugares, remotamente, e às quais quase não se tem acesso exceto por
estes canais controlados pela própria fonte informativa. Você quer falar com o
Banco Mundial sobre uma coisa e logo lhe encaminham ao setor de imprensa’,
relatou. Nesse cenário, a experiência dos jornalistas seniores é indispensável,
na avaliação de Milagros. É quem pode perceber os interesses ocultos por trás
das informações.


A redução da oferta de publicidade nos jornais, agravada pela crise
financeira internacional, afeta diretamente as redações. Dines questionou como
El País faz para cortar custos e, ao mesmo tempo, garantir a qualidade do
produto mantendo em seus quadros jornalistas experientes. Com a crise
financeira, outros problemas estruturais da imprensa foram agravados, na
avaliação de Milagros: ‘A crise de modelo industrial, de modelo de empresa
jornalística, e uma crise de credibilidade do jornalismo, que são anteriores à
crise econômica e que a crise econômica precipitou’, disse.


Informação cara


É preciso observar, na opinião de Milagros, que há milhões de leitores de
jornal, mas nem todos querem pagar pelo conteúdo oferecido. Quem está ‘ganhando
dinheiro em quantidades astronômicas’ com as informações produzidas pelos
grandes jornais são as ‘transportadoras’: as empresas que oferecem os serviços
de conexão, as telefônicas. ‘Os leitores têm que se perguntar se este modelo
pode chegar muito longe porque se alguém não está disposto a pagar pela boa
informação, terá informação, certamente – porque a internet garante que todo
mundo tenha toneladas de informação, muito mais informação do que possa digerir
–, mas essa é uma informação que vem com o interesse da fonte’, disse a
jornalista.


O leitor tem que estar consciente de que a informação gratuita tem distorções
e ‘pedágios’, ao contrário da informação independente produzida por jornalistas
e que ‘custa muito dinheiro’. Para Milagros, está claro que o futuro será a
internet, ainda que o jornal impresso continue por muito tempo ‘para os leitores
que, como eu, ainda amamos o papel’. Milagros contou que a grande pergunta feita
em todas as redações e por todos os diretores do jornal é: sobreviveremos tempo
suficiente na edição impressa, teremos leitores suficientes ainda em nossa
edição impressa para fazer essa transição?


Milagros chamou a atenção para o fato de que, nesta fase de transição e de
crise da mídia, é preciso identificar no novo jornalismo digital quais são os
riscos que podem afetar a qualidade da informação. Um deles, por exemplo, é o
tempo. Na edição digital, o tempo desaparece. ‘Não podemos renunciar a continuar
dando os furos, mas o grande risco é que, na tensão entre rapidez e segurança,
nos inclinemos excessivamente em favor de dar a notícia exclusiva, pela rapidez,
e perder em segurança’, alertou Milagros. A ombudsman do El País disse
que os jornais ‘sérios’ correm o risco de utilizar a internet de uma maneira
equivocada. Para ter maior audiência, podem perder credibilidade e se
transformarem em meios de entretenimento.


Rápido e curto


Outro ‘inimigo’ do jornalismo da atualidade identificado por Milagros é ‘uma
cultura geral que tende ao fast e ao short‘. Cada vez mais há a
crença de que qualquer estímulo visual ou auditivo profundo ou extenso é
‘chato’. Os leitores querem ‘as coisas mastigadas’ e em pequenas porções. ‘Se
nós caímos nesta tentação, se pensamos que, com isso, facilitamos que nossos
leitores venham até nós, na realidade o que estamos fomentando é um tipo de
cultura na qual o leitor nunca acaba tendo uma visão completa dos problemas. E
isso é muito grave, porque a sociedade na qual vivemos não é mais simples’,
disse a jornalista. Milagros ponderou que não é possível entender um mundo
complexo e que muda cada vez mais depressa apenas com pílulas de informação.