Na última sexta-feira, 31 de março, completaram-se 59 anos da deposição do então-presidente João Goulart (1919-1976) pelas Forças Armadas. O golpe militar instituiu, no Brasil, uma ditadura que durou 21 anos, de 1964 a 1985, e cassou direitos políticos, fechou o Congresso Nacional, retirou dos brasileiros o direito de votar para presidente da República, torturou e matou opositores (foram 434 mortos e desaparecidos, segundo a Comissão Nacional da Verdade) e, ainda, censurou a imprensa, as artes e todos os setores da produção de pensamento que pudessem denunciar o regime ditatorial.
No mesmo dia, a Folha de S. Paulo, um dos principais jornais do país, publicou um editorial (leia na imagem abaixo) sobre a volta de Jair Bolsonaro ao Brasil, após ele ter se recusado a passar a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva, eleito para seu terceiro mandato. Ao longo do texto, o jornal aponta a “chegada melancólica” do ex-presidente, critica o “propósito mesquinho” da viagem aos Estados Unidos, comenta o ineditismo da situação em que um ex-morador do Palácio do Planalto se coloca no dia a dia da oposição ao governo e, no fim, conclui: “O bolsonarismo até poderia, se abandonasse a violência e o autoritarismo, liderar uma oposição saudável ao PT. Esse não é, infelizmente, o desfecho mais provável.”.
Fosse publicado em qualquer data, o parágrafo final do editorial já seria alvo das críticas de muitos leitores, mas especialmente neste dia que é um marco trágico para a história da democracia brasileira, o peso foi ainda maior. A primeira versão do editorial, veiculada na Folha online, provocou intensa repercussão nas redes sociais, pois, o jornal publicou: “Opondo-se ao petismo, o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira — desde que abandone a violência, a atitude antidemocrática e a polarização irracional”. Por meio de um “Erramos” o jornal reescreveu as últimas linhas do editorial e o publicou na edição impressa de 31/03/2023 (veja print acima). A mudança é cosmética e mantém, na prática, o conteúdo antidemocrático.
A emenda saiu pior que o soneto: se antes, o jornal afirmava que era possível esperar do bolsonarismo uma oposição saudável ao Partido dos Trabalhadores; na nova versão, diz que o bolsonarismo pode dar vigor à política brasileira — tudo condicionado a não pactuar com a violência, o autoritarismo e a polarização irracional, ou seja, alguns dos principais elementos da chamada extrema direita. No entanto, basta lembrar da destruição das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro deste ano, e do ataque ao Capitólio americano, em janeiro de 2021, para reparar na impossibilidade de um cenário como o traçado pelo editorialista.
Atentados explícitos às democracias dos dois países, os episódios foram promovidos por apoiadores radicais das ideias autoritárias, violentas e polarizadas de seus líderes: Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil. Mais uma vez, muitos leitores não perdoaram e lembraram a relação da Folha com os militares, a data da publicação do editorial e o caráter antipetista assumido no segundo texto.
Neste domingo (2), o ombudsman do jornal, José Henrique Mariante, destacou em sua coluna (leia na imagem abaixo), entre outros problemas da cobertura durante a semana, a agressão que o editorial representou para os leitores ao “normalizar o bolsonarismo”. Uma crítica importante que prometia mais ao longo do texto, mas que se contentou a criticar menos o conteúdo e mais a redação da Errata. Em pouco mais de três parágrafos dedicados ao editorial, o ombudsman não esquece de pontuar que meses atrás a Folha “ruidosamente denunciava as investidas do bolsonarismo contra a democracia”, lembrando que não há opção de bolsonarismo sem violência e autoritarismo, como “gritam” os leitores. O problema é que o jornal parece não ouvir.
Relativização política
Ao usar o editorial para defender que o bolsonarismo poderia fazer oposição “saudável” ao novo governo, a Folha de S. Paulo concede o mesmo grau de legitimidade a um governo democrático, progressista e que acaba de começar, e a um fenômeno político de extrema direita. Fenômeno este que se notabilizou por um governo cujas inúmeras omissões ou mesmo ações deliberadas resultaram, para citar um exemplo, em mais de 700 mil mortes de brasileiros durante os dois primeiros anos de pandemia de Covid-19. Muitas dessas mortes, evitáveis, não fossem a omissão e mesmo a atuação deliberada de Bolsonaro e de seus apoiadores para dissuadir a população a se proteger por meio do isolamento social e, posteriormente, da vacinação.
E se a condição para dar “vigor” à política brasileira está em abandonar a violência, a polarização e o autoritarismo, talvez seja preciso recordar os atos violentos que o bolsonarismo incentivou antes mesmo das eleições, resultando em mortes como a de Moa do Katendê, em 2018, e a de Marcelo Arruda, em 2022; os ataques em massa a jornalistas como a repórter Patrícia Campos Mello, prata da casa; e o constante questionamento dos outros poderes da República, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), além da campanha de difamação e invalidação de outros atores da política.
Há que se lembrar, ainda, que o editorial não é um espaço qualquer dentro da lógica opinativa/informativa de um jornal. Ele é destinado à manifestação do ponto de vista da empresa jornalística e carrega os interesses da instituição como agente político. A pesquisadora Camila Mont’alverne aponta, em sua tese, duas funções principais a serem cumpridas pelos editoriais: a mercadológica, que contribui para a construção da imagem do periódico e de suas diferenciações em relação à concorrência; e, em segundo lugar, a tentativa de colocar-se como um participante das discussões públicas, “com objetivo de influenciar os leitores (alguns segmentos mais que outros) ao explicitar uma agenda pertencente à publicação” (PESSOA, 2020, p. 78).
Assim, é mais do que válido o questionamento dos leitores sobre “o que a Folha pensa”, especialmente num dia em que todos deveríamos repudiar a ditadura militar e seus entusiastas. Esse questionamento tem o potencial de ensinar uma lição ainda não aprendida, mesmo décadas depois do horror ditatorial e apesar dos últimos quatro anos: a de que a democracia é frágil demais para qualquer relativização política e o jornalismo tem (ou deveria ter) compromisso em defendê-la diante das mínimas ameaças.
Referência
PESSOA, Camila Mont’Alverne Barreto de Paula. A imprensa como agente interessado na reforma política: um estudo sobre a cobertura noticiosa e editorial da Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo (1989-2017). 2020. 262 f. Tese (Doutorado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/67307. Acesso em: 03 abr. 2023.
Texto originalmente publicado em objETHOS
***
Raphaelle Batista é Doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS