Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paradoxo da francofonia: Um espaço organizado em busca de sentido

(Foto: Legnan Koula)

Uma vez terminada a Semana da Língua Francesa e da Francofonia, neste último 26 de março, é preciso nos perguntarmos a respeito da relevância da francofonia. Ela é de fato uma possível ferramenta diplomática, cultural e linguística? Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurés, analisa os vários paradoxos da Francofonia, e que recentemente uma série de posições adotadas pelo presidente Emmanuel Macron reforçaram ainda mais.

A francofonia é um fato. Ela tem ramificações nas cinco partes do mundo. De Bruxelas à Montreal, também no “Novo Mundo”, passando por Cotonou, na África e por Porto Vila, no Pacífico. O francês, como muitas outras línguas, reflete a diversidade linguística do mundo. Uma diversidade que deve, segundo uma Declaração da Unesco de 2001, ser protegida, à semelhança da biodiversidade.

Foi em parte com essa intenção que em quase todos os territórios onde se fala francês foram criadas diferentes estruturas institucionais comuns, em uma rede complexa de espaços cooperativos para promoção dessa diversidade linguística. No entanto, fica sempre uma dúvida no ar. Essa organização institucional que é vista como uma unidade, e que é responsável pelas distintas formas de cooperação linguística, conta, no entanto, com um grande dinamismo e variedade, para o bem ou para o mal. Hoje, como no passado, não há dúvida de que falta um fio coletivo que exerça uma orientação a essa organização. Essa variedade nas formas de cooperação retira força e eficácia desse denominador francófono comum.

Como entender essa contradição? Ela não tem nada de conjuntural, mas está ligada à própria história da francofonia. Como entender que essa língua, que soube adquirir tantas estruturas cooperativas, seja tão pouco radiante?

Um espaço em contínua expansão institucional

A definição mais simples da francofonia é a de um espaço onde o francês é usado total ou parcialmente pelas populações de vários territórios do mundo. A palavra foi cunhada por um geógrafo da era colonial, Onésime Reclus, no final do século XIX. A expressão tinha naquela época uma definição apenas descritiva, o que, aliás, se manteve por muito tempo.

A francofonia institucional apareceu muito mais tarde. Ela tinha por objetivo nortear e aproximar os usuários da língua, quer estivessem sob a autoridade de governos nacionais, regionais e locais, quer fossem simples falantes de grupos humanos sem qualquer representação política particular. Essa emergência organizacional da francofonia ocorreu de forma desordenada e tardia.

Sua regulamentação foi inicialmente o resultado de iniciativas vindas da África ou de canadenses franceses. Com efeito, foi por ocasião do III Congresso da Língua Francesa no Canadá, em 1952, que a primeira pedra foi colocada. A segunda, no final dos anos de 1960, foi instalada por três chefes de Estado africanos, o tunisiano Habib Bourguiba, o nigeriano Hamani Diori e o senegalês Léopold Sédar Senghor. O projeto tomou forma em Niamey, capital do Níger, no ano seguinte, com a fundação da ACCT, a Agência de Cooperação Cultural e Técnica, matriz da OIF (Organização Internacional da Francofonia) atual.

Hoje, o que é chamado de francofonia tem uma arquitetura piramidal. No topo, há uma cabeça um tanto paradoxal, a OIF, e paradoxal, na medida em que, de forma ilógica, foi a última instituição dessa natureza a ser inventada, em 2006. A OIF, em 2006, integrou, portanto, instituições pré-existentes, criadas há muito tempo. A coordenação das universidades francófonas data, por exemplo, de 1961, e a Associação dos parlamentares de língua francesa data de 1967.

Independentemente desta cronologia inversa, há outra característica igualmente desconcertante. A francofonia inicial tinha por objeto a partilha de territórios onde a língua francesa se beneficiava de um estatuto oficial, reflexo de um uso social e coletivo da língua – fossem eles europeus, como a Bélgica, a França, a Suíça e Luxemburgo, quer se tratasse de antigas colônias belgas e francesas, da África e da Ásia, quer de terras americanas, como o Canadá, o Quebec e o Haiti. Já não é esse o caso. Com efeito, a OIF reúne hoje entidades total ou parcialmente francófonas, mas também países que não o são e nunca o foram, como a Bósnia-Herzegovina, a Coreia do Sul, os Emirados Árabes Unidos, o Kosovo, o Catar ou ainda a Ucrânia. Dos 88 membros atualmente afiliados à OIF, apenas 32 têm o francês como língua oficial ou cooficial.

Isso significa que os objetivos atuais da francofonia vão muito além da língua. A língua continua a ser objeto de programas específicos e de iniciativas diversas, mas esses programas coabitam com temáticas relativas à defesa da democracia e dos direitos humanos, ao reforço da paz, ao desenvolvimento ou à proteção do ambiente, que parecem redundar com os das Nações Unidas ou do Conselho da Europa.

À margem da pirâmide da OIF, foram criadas outras estruturas – associações diversas, ONGs –, baseadas na proximidade linguística. Um grande número dessas outras instituições patrocinam criadores culturais francófonos, escritores, músicos, diretores de filmes etc. Além disso, festivais em vários lugares do mundo os reúnem com regularidade, por exemplo em Caraquet (o Festival acadiano), La Rochelle (Les Francofolies), Limoges (Les Francophonies), Montreal (Les Francofolies), Paris (o festival Francofonia mestiça) ou Angoulême (festival do filme francófono).

A vida dessas instituições, como a de qualquer organização, gera constantemente boas ou más razões para se perpetuar. Elas estão à procura de novos membros. Nos últimos anos, a OIF integrou nove novos participantes: 2 em 2014 (Kosovo e México); 3 em 2016 (Argentina, Canadá-Ontário, Nova Caledônia); 4 em 2018 (Gâmbia, Irlanda, Louisiana, Malta). Elas têm uma agenda de atividades ampla. A OIF, por exemplo, se reúne em uma cúpula a cada dois anos. Os Jogos da Francofonia seguem um ritmo quadrienal.

Um labirinto de sentidos e um emaranhado de caminhos sem saída óbvia

Analistas, observadores, jornalistas, acadêmicos e curiosos sobre a francofonia fazem todos um diagnóstico paralelo. “O papel da OIF é complexo e nebuloso”, escreveram, por exemplo, numa das últimas publicações de referência, Maria Candea e Laélia Véron [1].

O rico florescimento institucional que é a francofonia não conseguiu no passado nem no presente, embora mais no passado do que hoje, fornecer ao movimento francófono uma bússola que fosse comum e coerente. Desde o início, várias contradições, não resolvidas, corroeram uma ambição que se poderia supor compartilhada. Esse paradoxo não tem uma explicação única, mas decorre de interpretações cruzadas, mesmo incompatíveis, da francofonia através de seus vários componentes.

Essa realidade reflete, antes de mais nada, aquela de Estados ou territórios francófonos de longa data, e outros que o são como consequência da colonização. Os primeiros privilegiam as dimensões linguística e cultural da OIF, articuladas numa diplomacia de influência baseada na língua. Os outros, países do Sul, antes dependentes da Bélgica e da França, colocam mais ênfase na ajuda ao desenvolvimento que os francófonos do Norte podem, ou devem, prestar, devido à sua riqueza e ao seu passado colonial.

A francofonia é paralelamente, para alguns, um espaço de legitimação internacional, muito antes de ser um espaço de cooperações linguísticas, ou mesmo de solidariedades diversas entre países que partilham a língua francesa. O Quebec foi pioneiro nos anos de 1960-1970. Província canadense, com uma forte base independentista, o Quebec obteve de Ottawa o direito excepcional de poder aderir a uma organização internacional, a OIF, o que gerou um efeito dominó, fazendo com que o governo canadense “encorajasse” outras adesões provinciais (Nova Brunswick e Ontário), para enfraquecer aquela do Quebec.

A OIF tornou-se, assim, ao longo dos anos, um espaço tão competitivo quanto cooperativo. O governo federal do Canadá gradualmente disputou com a França o papel central da francofonia, reivindicando assentos e conferências. A OIF também foi instrumentalizada por Ottawa como forma de facilitar a presença canadense nas ex-colônias africanas da Bélgica e da França, ricas em potencial energético e mineral.

Essa dimensão menos linguística e cultural abriu um espaço diplomático aos Estados que procuram reconhecimento internacional. Com efeito, a OIF, instituição pouco restritiva, permite, num prazo relativamente limitado, efetuar com êxito os procedimentos de adesão. O Kosovo, que tem dificuldade em ser reconhecido como Estado de pleno direito, escolheu, portanto, entre outras opções, entrar para a OIF. A Ucrânia, cuja existência é contestada pelo seu vizinho russo, e que bate sem sucesso às portas da OTAN e da União Europeia, seguiu esse caminho. A Argentina entrou na francofonia com outras preocupações. Estrangulado pela sua dívida externa, o país bate em todas as portas, a fim de encontrar o máximo de apoios internacionais. Além disso, esse gesto pode ser interpretado como um passo em direção à França que atrasa a assinatura do Acordo entre o Mercosul e a União Europeia, acordo que, segundo Buenos Aires, traria uma “bolsa de ar” às suas exportações agrícolas. Inesperadamente, seguindo o exemplo do Canadá e do Quebec, a França, lutando com a resolução da contenda da Caledônia, facilitou a sua adesão à OIF, organização internacional, de mais um Território Ultramarino francês sob sua soberania, a Nova Caledônia.

O elemento sem dúvida mais significativo da francofonia é a ascensão de uma diplomacia linguística e cultural. Trata-se de um instrumento bem conhecido e documentado da influência externa dos Estados sobre outros países. O Canadá, a França e o Quebec jogaram esse jogo com mais ou menos sucesso. Dito isto, inclusive na época do general de Gaulle, e durante vários anos, a diplomacia francesa não pensou na francofonia como multiplicador de influência internacional. O general de Gaulle privilegiava em matéria cultural, como em muitas outras, as relações bilaterais para melhorar a projeção externa da França. Isso se aplicava às antigas colônias africanas da França, à antiga Indochina e ao Líbano, assim como ao Canadá e ao Quebec. Recorda-se que em 1967, num discurso proferido na sacada da prefeitura de Montreal, ele havia encorajado as correntes independentistas do Quebec e provocado uma grave crise diplomática com as autoridades federais canadenses. Para lidar com as antigas dependências africanas, e depois de ter tentado construir uma Comunidade Política com elas, de Gaulle dotou o Ministério dos Negócios Estrangeiros de um duplo instrumento administrativo, financiado com generosidade, a fim de garantir a perpetuação da presença tricolor, o chamado Ministério da Cooperação e a DGRST (Direção-Geral das Relações Científicas e Técnicas). O general de Gaulle considerava que as organizações multilaterais, quer se tratasse da francofonia, do Mercado Comum, da OTAN, ou mesmo da ONU, eram “tudo e qualquer coisa” [2]. Seus sucessores, Georges Pompidou e Valéry Giscard d’Estaing, consolidaram essa abordagem com a invenção, em 1973, das cúpulas franco-africanas.

Alguns anos mais tarde, em 1986, a convite do presidente François Mitterrand, foi organizada em Versalhes a primeira cúpula da francofonia. Naquele momento, a França decidiu integrar a cooperação entre territórios parcial ou totalmente francófonos na sua diplomacia de influência. É criada uma secretaria de Estado especificamente dedicada à francofonia. Os resultados dessa iniciativa, segundo Hubert Védrine, conselheiro diplomático do presidente entre 1981 e 1986, e depois secretário-geral do Eliseu até 1995, não teriam estado à altura das expectativas: “para enfrentar o rolo compressor anglófono, os francófonos [não devem ter] complexos ao falar e escrever na sua língua […] Caso contrário, as cúpulas francófonas não passarão de encontros em que se aborda em francês a mesma agenda que a de outros fóruns internacionais, sem que o uso do francês saia reforçado” [3].

Esse contexto incerto, do lado francês, talvez permita compreender as dúvidas que acompanharam a consolidação, em 2006, da francofonia institucionalizada, como a OIF. Desde a implementação da primeira organização comum, a ACCT, em 1970, surgiram disputas entre o Canadá e a França. E também, de modo muito rápido, as querelas entre Ottawa e Quebec perturbaram a definição de um denominador partilhado. Essas dissonâncias foram acentuadas pelos membros africanos da OIF, que quiseram conferir à instituição uma dimensão mais desenvolvimentista do que linguística e cultural. Finalmente, mas de modo não menos paradoxal para um suposto espaço linguístico comum, um número apreciável de escritores africanos, canadenses, libaneses ou quebequenses contestou a distinção feita entre autores franceses e francófonos [4]. Eles reivindicam uma convivência amigável não entre franceses e francófonos, mas entre franceses e falantes de outras línguas faladas nas regiões de língua francesa. Pode se tratar, no Líbano, do francês e do árabe, ou no Senegal, do francês e do wolof. Em conclusão, esses sujeitos recusam qualquer distinção entre o francês da França e o de outros lugares, comumente qualificado de francófono, qualificativo, segundo eles, sem razão de ser, que introduziria uma espécie de hierarquização entre um centro detentor das origens e uma periferia.

A francofonia abandonada pelo seu núcleo duro, a França?

A francofonia sofre com a marcha do mundo. É difícil analisar as suas incertezas institucionais fora do âmbito e do contexto internacionais em que está inserida.

Desde o fim da guerra fria, pesam as influências multiformes da globalização econômica. A globalização produz um mundo que obedece a normas unificadoras de um mercado em expansão indefinida. O mercado valoriza as economias de escala e a sua lógica natural é redutora de diversidades culturais, ambientais, de gênero, institucionais e linguísticas. A sociedade de economia global esforça-se por fabricar indivíduos consumidores intercambiáveis, de Bruxelas a Pequim.

Os Estados Unidos, vitoriosos da Guerra Fria, vencedores do ponto de vista diplomático e militar, mas também econômico, financeiro e tecnológico, aspiram desde os anos 90 tomar a direção de uma reorganização do mundo, baseada na sua mercantilização. Essa intencionalidade é portadora de uma universalização baseada nos atributos do vencedor, na sua moeda, nas suas empresas, nas suas tecnologias, nas suas normas jurídicas e morais, nas suas músicas e nos seus imaginários e, “naturalmente”, na sua língua. As sociedades transnacionais de origem japonesa ou europeia, privilegiando o valor lucro, estão “dentro desse comboio” e adotaram para si mesmas também a referência norte-americana.

Os pequenos Estados, mas também as potências médias, perdem progressivamente sua capacidade de influenciar, ou mesmo sua legitimidade e sua razão de ser. As normas do mundo globalizado corroem e desvalorizam progressivamente suas referências coletivas, quer se trate das solidariedades nacionais ligadas ao Estado beneficente – aceitação do imposto, serviços públicos, pensões por repartição – ou do respeito às filiações comuns – língua nacional, símbolos de união nacional. Em última análise, esse reaparecimento da vida em comum interpela mais veementemente o contexto político, isto é, a perpetuação da democracia como quadro nacional regulador pacífico de conflitos.

Os chefes de Estado têm de gerir os efeitos de uma globalização diferencial em função da sua localização. Um, de aplicação universal, afeta os países dos cinco continentes, e, portanto, também os europeus francófonos, da Bélgica, da França, de Luxemburgo e da Suíça. O outro, mais especificamente europeu, diz respeito a um “velho continente” e aos francófonos citados, com exceção da Suíça, comprometendo os Estados-membros na via redundante de uma convergência baseada nos valores da economia globalizada e mercantil. Todos os responsáveis políticos no poder, segundo ritmos e âmbitos diferenciados, se comportam cada vez mais, não como chefes de Estado, na acepção tradicional do termo, mas como “diretores-gerais” de países-empresa ou, segundo uma terminologia que tende a alargar-se, em países-marca, em situação de concorrência uns com os outros e todos com as empresas transnacionais do mundo globalizado. Eles fazem isso adotando o padrão desse novo mundo, adotando sua linguagem e referências culturais, legais, morais e normativas. A fachada institucional e cultural, proveniente de uma história partilhada, permanece em vigor, mas é cada vez menos respeitada e aceita.

Os cidadãos dos países membros da União Europeia vivem num ambiente simbólico concorrencial: bandeiras duplas nos edifícios públicos – europeu e nacional –, dupla definição dos documentos de identidade, com utilização de duas línguas, o inglês e a língua nacional. Assiste-se à criação de duplas legitimidades eleitorais representativas, nacional e europeia, com um uso generalizado do inglês pelas instituições europeias, à maneira das práticas internas das empresas transnacionais.

Esta evolução já tem consequências sobre a percepção e a experiência das administrações nacionais. A ação externa da França, país centro da francofonia, perdeu em 2022 seu caráter específico. Sob a responsabilidade de um ministério de “transformação pública”, o governo uniformizou o conjunto da função pública. Como nas empresas multinacionais, os assalariados do Estado passarão a ter funções de gestão geral indiferenciadas, podendo a mesma pessoa, enquanto “administrador do Estado”, ter de tratar ao longo de sua carreira de agricultura e francofonia, educação nacional e assuntos consulares. A diplomacia, segundo as definições clássicas da palavra, deve estar a serviço do interesse nacional. Ela defende esse interesse de várias maneiras, todas levando em conta a língua e a cultura. Isto pressupõe a existência de um corpo de funcionários com competências especiais, formados internacionalmente, mas com uma forte consciência dos interesses que têm de garantir. Em 18 de abril de 2022, o Jornal Oficial da República Francesa assinalou o fim progressivo do corpo diplomático [5]. Essa mutação administrativa, excepcional pela sua radicalidade [6], é coerente com o movimento da história. Com a perda progressiva de sentido e de capacidades, os Estados se transformam em atores entre outros da economia global, ao lado e em concorrência com as empresas transnacionais.

A diplomacia, nesse contexto, já não trata dos mesmos assuntos de há trinta anos, as hierarquias e as prioridades já não são as do “mundo de ontem”. Língua e cultura “nacionais”, além de diplomacia de influência, perderam o sentido que ainda tinham em 1986, data da primeira cúpula francófona. Um dos melhores especialistas franceses em relações internacionais, Frédéric Charillon, fez uma demonstração editorial disso. Em uma de suas obras publicadas em 2011, ele fez referência pela última vez à francofonia como instrumento de uma política de influência da França [7]. Essa referência desapareceu em seus últimos livros, publicados em 2021 e 2022, anos do primeiro quinquênio do presidente Emmanuel Macron.

O presidente Macron tirou as conclusões lógicas dessa deriva em direção a um mundo mercantil, monocultural e unilíngue. Ele banalizou a diplomacia e também reivindicou a necessidade de os francófonos interpretarem a diversidade, dando ao inglês um lugar central. As afirmações que seguem foram proferidas em Davos perante um público atraído por causa da francofonia: “Alguns teriam preferido que eu falasse apenas em francês, mas exprimir-me em inglês num recinto que reúne a comunidade empresarial é, antes de mais nada, útil, e é mostrar que o francês se constrói […] no plurilinguismo” [8]. Estudando o conceito de francofonia tal como é entendido pelo presidente francês, um linguista alemão, Jürgen Erfurt, considerou que a sua visão do plurilinguismo está “imbuída da ideologia neoliberal” e “consiste em poder exprimir-se como francês, em inglês, já que as relações econômicas em vigor no mundo o exigiriam” [9].

Com efeito, a França – país central do mundo de expressão francesa – reduz progressivamente a legitimidade e a pertinência de continuar a se exprimir, a escrever, a trabalhar e a se divertir em francês. Apesar da Constituição que, no seu artigo 2º, indica que “A língua da República é o francês”, e da Lei 94-665, dita “Toubon”, de 4 de agosto de 1994, que tem por objeto proteger os consumidores e os assalariados contra qualquer utilização abusiva do inglês. Grandes empresas, como a Air France (o cartão “Fréquence Plus” foi substituído por “Flying Blue”, a garantia se chama “Air France Protect”, as condições de viagem são checadas no app “TravelDoc” etc.), a SNCF (serviço “Trainline”, anteriormente “Captain Train”), o Banque postale (“Ma French Bank”) e outros serviços públicos cada vez mais oferecem seus serviços em inglês. Desde 2 de agosto de 2021, o bilhete de identidade nacional é agora bilíngue, francês-inglês. O inglês, por outro lado, amplia sua influência na educação. A extensão das universidades privadas dedicadas ao estudo do mundo dos negócios transformou as escolas de comércio em business schools. A maior parte do ensino nessas instituições é feita em inglês anglo-americano, a tal ponto que os diplomas da educação em geral, pública e privada, são emitidos numa terminologia anglo-saxônica (Bachelor Master).

Essas mudanças linguísticas e culturais às margens da legalidade respondem aos impulsos dados pelos doadores de ordem institucional e social – empresas privadas e públicas, meios de comunicação social, sistemas de ensino, influenciadores musicais –, protegidos por um laisser-faire dos poderes públicos. Em 1946, uma campanha oficial convidava os alsacianos e os lorenos a abandonarem o alemão em benefício do francês, “chave do sucesso”. Hoje, assiste-se à construção de uma programação dos cérebros que coloca o anglo-americano como “chave do sucesso”. O francês e a cultura a ele associada são necessários para qualquer estrangeiro que deseje adquirir a nacionalidade francesa. Em contrapartida, a norma social imposta como natural, novo avatar da “servidão voluntária”[10], prevalece em relação à substituição da língua francesa pelo anglo-americano, e a cultura que o acompanha: da realização individual, do sonho americano, do bem-estar pessoal, da tecnologia de ponta, da comida, das músicas, das séries etc.

A língua, nesse contexto, está cada vez mais impregnada de termos vindos do outro lado do Atlântico. As palavras que refletem realidades novas são cada vez menos traduzidas. Para saber exatamente do que se trata, é preciso consultar uma fonte linguística canadense e quebequense. E mais e mais palavras francesas usuais são substituídas por equivalentes anglo-americanos. Esse fenômeno pode ser observado em letreiros comerciais. As lojas, cada vez mais, já não estão “ouverts” e “fermés”, mas “open” e “closed”. Nos últimos meses, cabeleireiros e seus salões foram substituídos por “barbers shops”. O calendário social e comercial é cada vez mais marcado por festas vindas do mundo anglo-saxão: Saint Patrick, Halloween, Black Friday etc.

“A camada ianque […] dentro da sociedade francesa é relativamente nova”, relataram Jérôme Fourquet e Jean-Laurent Cassely em uma publicação recente. “Mas esse estrato cultural viu sua espessura aumentar”, a ponto de hoje “os Estados Unidos serem uma paixão francesa” [11].

A universidade participa da legitimação dessas evoluções culturais e linguísticas. Seja ironizando aqueles que pretendem preservar a prioridade concedida ao francês na vida social, seja os tornando “antiquados”. Um eminente diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), Philippe d’Iribarne, escreveu sobre o assunto um livro revelador do meridiano de referência das elites intelectuais e comerciais, L’étrangeté française [12]. Estranheza em relação à língua e à norma já dominantes, e legitimadas como tais, que só permitem, segundo a professora de letras e tradutora Pascale Casanova, “avaliar, medir e comparar” [13].

Conclusão: o paradoxo da francofonia seria o sinal anunciador do desaparecimento da língua francesa?

A francofonia em geral e o francês na França vivem hoje um momento de incertezas. O paradoxo francófono deve muito sem dúvida à incertitude linguística do hexágono. A romancista argelina Ásia Djebar chegou a uma conclusão radical sobre “o desaparecimento da língua francesa”. Essa constatação é partilhada por Régis Debray que, numa de suas últimas obras, escreveu que “o francês já não tem vida na França, onde reina atualmente o homo economicus, que vive em inglês”.

O francês é, assim, progressivamente relegado da esfera pública e das mais diversas atividades. Trata-se ainda de um não dito, mas essa evolução foi notada por diversos governos de países membros ou próximos da francofonia. Três deles, críticos da distância tomada pela França a respeito dos objetivos da francofonia desejados pela África, aderiram ao Commonwealth, clube das antigas colônias britânicas: Gabão, Ruanda e Togo.

Dito isto, e não é um paradoxo qualquer, apesar da esmagadora capacidade abrasiva do “cilindro anglo-americano”, a criatividade literária em francês continua viva na África e no Quebec, passando pelo Haiti, Martinica, Guadalupe… e na França metropolitana, assim como a vitalidade associativa nos quatro cantos da francofonia e que reflete uma expectativa e uma criatividade cidadã, cujo objetivo é a perpetuação da diversidade cultural.

Notas

Texto publicado originalmente em francês, no dia 29 de março de 2023, no site do Instituto Jean-Jaurés, Seção “Internacional”, Paris/França, com o título original, “Paradoxe de la francophonie: un espace organisé en quête de sens”. Disponível em aqui. . Tradução de Manoel Sebastião Alves Filho e Luzmara Curcino.

[1] Maria Candea & Laélia Véron. Le français est à nous. Paris: La Découverte, 2021, p. 127-141.

[2] Designação empregada em um discurso proferido em Nantes em 10 de setembro de 1960.

[3] Hubert Védrine. Les mondes de François Mitterrand. Paris: Fayard, 2016

[4] Ver Véronique Corinus & Mireille Hilsum (org.). Lire et donner à lire les littératures francophones. Rennes: PUR, 2022.

[5] Decreto 2022-561 de 16 de abril de 2022.

[6] Quase todos os países do mundo mantêm a necessidade de dispor de um corpo de especialistas que garanta, pela independência do seu estatuto e formação, a defesa dos interesses nacionais. Ver a esse respeito Revista Mexicana de Politica Exterior “Diplomacia en el mundo contemporáneo: Educación diplomática por el siglo XXI”, n°121, 2021.

[7] Frédéric Charillon. La politique étrangère de la France. Paris: La Documentation française, 2011, p. 53.

[8] Emmanuel Macron, presidente da República, Déclaration sur la francophonie, Paris, 20 de março de 2019.

[9] Jürgen Erfurt. Ce que francophonie veut dire. Cahiers internationaux de sociolinguistique, n°13, 2018, p. 37.

[10] Le Discours de la servitude volontaire foi publicado em 1574 por Étienne de La Boétie.

[11] Jérôme Fourquet & Jean-Laurent Cassely. La France sous nos yeux. Paris: Seuil, 2021, p. 477-511.

[12] Philippe d’Iribarne. L’étrangeté française. Paris: Seuil, 2006.

[13] Pascale Casanova. La langue mondiale: traduction et domination. Paris: Seuil, 2015.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.