Todas as pessoas têm conhecimentos empíricos e abstratos sobre o seu cotidiano, seu trabalho, sobre o que vivem e sobre o que escolhem se interessar intelectualmente — sim, há cidadãos “normais” que amam o conhecimento e estudam por prazer.
Essa noção tem gerado expressões como “ciência cidadã”, “conhecimento leigo” e “expertise leiga” no campo dos estudos sociais da ciência.
Mais amplamente nas ciências sociais noções como “novas epistemologias”, “epistemologias do sul”, “saberes localizados” e “ecologia de saberes” — dentre outros — são alguns dos conceitos reivindicadores de uma “justiça epistemológica” para conhecimentos invisibilizados também pela condição de marginalidade de quem os possui.
Isso posto, caberia uma divulgação científica desses conhecimentos que estão fora das instituições tradicionais e clássicas de ciência?
Antes de responder a essa pergunta, cabe um preâmbulo.
Tal provocação surgiu durante a primeira reunião mensal do Grupo de Estudos da RedeComCiência, realizada em março, que conta com a organização da Monique Oliveira, uma das diretoras da Rede e também pós-doutoranda pela Fapesp no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo Científico da Unicamp.
O grupo tem como objetivo discutir e provocar questionamentos a partir de leituras sobre a prática de atividades relacionadas à comunicação e divulgação científica.
Foram co-organizadores e participantes desse evento Clara Marques (Mestranda Labjor/Unicamp e Jornalista do Proqualis/Fiocruz), Giselle Soares (Doutoranda, DPCT/Unicamp), Carla Tôzo (Doutoranda, PPGCOM-ECA-USP), Cristiane d’Avila (Jornalista da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz) e José de Paiva Rebouças (Diretor da Agência de Comunicação da UFRN).
O texto escolhido para leitura foi “Uma avaliação crítica dos modelos de compreensão pública da ciência: usando a prática para informar a teoria”, de Dominique Brossard e Bruce V. Lewenstein, no qual são abordados os modelos de déficit, contextual, conhecimento leigo e engajamento público a partir de um estudo de caso com diferentes atividades práticas relacionadas ao Projeto Genoma Humano.
O modelo de déficit e o modelo contextual estão alinhados à uma ideia clássica de divulgação científica ligada à alfabetização de ciência, em que o público-alvo é considerado majoritariamente receptor do conhecimento, sem um envolvimento dialógico como prioridade dessa divulgação. Cabe colocar que o modelo contextual envolve uma noção um pouco mais sofisticada que o de déficit, em que são consideradas as especificidades sociais de cada público, como a classe e o nível educacional.
Já os modelos de conhecimento leigo e de engajamento público consideram maior protagonismo social, com cidadãos sendo inclusive emissores de saberes, conhecimentos e práticas.
Ao fim, os autores questionam o uso rigoroso dos modelos teóricos apresentados na opinião pública e na compreensão pública da pesquisa ligada à ciência. Também reforçam a necessidade de construção de pontes entre diferentes paradigmas de pesquisa para que a investigação em divulgação científica seja mais produtiva.
Questionamentos e redefinições dos modelos teóricos
O texto foi muito interessante para todos e concordou-se sobre, na prática, haver um uso misto dos modelos em muitos sentidos. Em consonância com o texto, questões sobre se há hierarquia entre esses modelos – e se de fato eles podem ser considerados como melhores que outros — foram colocadas.
Contudo, o fato de repensarmos se há uma hierarquização entre os modelos teóricos não excluiu a possibilidade de serem pertinentes as críticas feitas às diferentes escolas. Pode-se, portanto, considerar as limitações de cada um dos modelos para a aplicação adequada na divulgação científica.
Também há muitas definições no texto que foram questionadas e esmiuçadas pelos participantes. “Quem é de fato esse leigo? Ele é um só? Cientistas também não são leigos nas áreas às quais não se dedicam? E quem é leigo em relação às humanidades? Nossas fontes não são leigas em relação ao trabalho do divulgador e do jornalista? Quem é esse público, ele também é um só? E que tal falarmos de pessoas e de suas singularidades e não de um público muitas vezes inespecífico? Mas também como falar de especificidades do público na mídia de massa voltada a tantos grupos ao mesmo tempo?”
Indo para a prática – Diversidade de fontes e de perguntas
Por fim, pensamos juntos sobre como seria de fato a aplicação do modelo de conhecimento leigo e de engajamento público na prática da divulgação científica.
Houve dúvidas sobre o modelo de engajamento público. Isso estaria apenas na mão da divulgação científica, ou viria antes, em um desenho de pesquisa que pensasse esse engajamento e também de propostas de inserção da comunidade nesse processo?
De todo o modo, apesar de entendermos a necessidade que esses questionamentos estejam presentes em toda a etapa da produção do conhecimento científico, reconhecemos que há algumas reflexões a serem feitas especificamente na divulgação científica. Enquanto os modelos não traduzem fielmente o que ocorre na prática, podem servir como ideias propulsoras que conduzam a reflexões sobre algumas escolhas.
Uma delas vai no sentido de nos questionar sobre se é possível inserir outras fontes na divulgação científica, para além dos cientistas. Suponhamos que um grupo de pesquisadores fará uma intervenção X em uma comunidade de pescadores. Não caberia entrevistar os pescadores? Ou ainda, não poderiam ser os pescadores fontes prioritárias, no sentido de colocarem suas demandas sobre quais são suas dificuldades técnicas? Eles não poderiam indicar como a ciência pode colaborar ou se já teriam soluções para os problemas que enfrentam?
Assim, uma questão prática para a divulgação científica a partir dos modelos estudados é sobre a necessidade de inserção da maior diversidade entre as fontes consultadas, que podem contribuir para a visibilidade de outros conhecimentos e práticas.
Outro ponto concreto para o trabalho do divulgador, a partir de uma reflexão sobre o modelo de engajamento público, é sobre a possibilidade de inserção de uma maior diversidade de perguntas na hora de realizar entrevistas.
Nós, divulgadores, poderíamos focar em uma pauta de questionamentos para os cientistas entrevistados que levasse em conta o impacto público da pesquisa – e não somente realizar perguntas sobre, por exemplo, os resultados do experimento.
Fontes científicas podem ser provocadas a pensar sobre o retorno para a sociedade da pesquisa que realizam e como exatamente as demandas sociais estão sendo levadas em consideração.
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Clara Marques é Mestranda Labjor/Unicamp e Jornalista do Proqualis/Fiocruz)
Carla Tôzo é doutoranda, PPGCOM-ECA-USP
Cristiane d’Avila é jornalista da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz