Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Francisco, dez anos como Papa, dez anos de contestação em suas terras latino-americanas

(Foto: Vatican Press)

Francisco, “el Papa Francisco”, acaba de celebrar seu décimo aniversário como chefe da Santa Sé. Celebração é uma palavra muito inadequada na América Latina. Desde 2013, o catolicismo e suas hierarquias têm sido sistematicamente contestados na América Latina.

A América Latina católica vem sendo mordiscada pelos evangélicos. A América Central, Brasil, Peru, estão escorregando progressivamente em direção às denominações evangélicas da teologia da prosperidade. O acesso ao Céu cristão professado por essas denominações vincula a benevolência divina ao lucro capitalista e tem engolido uma parte crescente do mercado espiritual. Em 1995, 80% dos latino-americanos diziam ser católicos. Esta proporção caiu para 59% em 2018.

Durante a guerra fria do século passado, após o Vaticano II, a Santa Sé e o CELAM (Conferência Episcopal Latino-Americana) escolheram ficar ao lado dos pobres. Os padres haviam se unido ao ELN (Exército de Libertação Nacional) colombiano e à FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) salvadorenha. As potências militarizadas, apoiadas pelos Estados Unidos de Ronald Reagan, realizaram então um duplo contra-ataque.

Primeiro, pela força das armas, reduziram os religiosos ligados a toda e qualquer forma da teologia da solidariedade com os pobres e questionadores dos privilégios dos poderosos. O bispo Oscar Arnulfo Romero [1] foi assassinado em sua catedral em El Salvador em 24 de março de 1980. Seis jesuítas foram mortos pelo exército salvadorenho em 16 de novembro de 1989, por exemplo.

Segundo, pelo incentivo financeiro com vistas à implantação e disseminação de um cristianismo empresarial baseado na salvação individual, o Pentecostalismo. O Vaticano desistiu de se opor aos ataques. Um papa polonês anticomunista, João Paulo II, assistido por um cardeal alemão, Joseph Aloisius Ratzinger, purgou então o catolicismo latino-americano.

Esta escolha, apreciada pelas “elites” locais e pela Casa Branca, não impediu que a Igreja perdesse influência. Para agitar as coisas, Jorge Mario Bergoglio, cardeal de Buenos Aires, foi eleito Papa em 2013. Francisco, seu nome de pontífice, alterou as formas de agir adotadas até então. Ele santificou o arcebispo Romero. O teólogo da Teologia da Libertação brasileira, Leonardo Boff, antes excomungado, foi reabilitado. A igreja dos pobres, o trabalho pastoral da classe trabalhadora do episcopado brasileiro, que havia sido colocada na lista negra por João Paulo II, pelo arcebispo Ratzinger e pelos presidentes republicanos dos Estados Unidos, também foi reabilitada.

Em 20 de janeiro de 2018, no Peru, Francisco exclamou, “há tormentos que nos desafiam […], a violência organizada […], a falta de oportunidades educacionais e de trabalho, a falta de moradia que obriga tantas famílias a viver na […] precariedade”. Em 2018 iniciou o processo de beatificação de um bispo brasileiro, Domingo Evangelista Pinheiro. Ele havia formado as primeiras professoras negras, no final do século XIX, durante os últimos anos do Império ainda escravagista. Na Bolívia, em 2015, o Papa pediu “com humildade, perdão […] pelos crimes contra os povos originais cometidos durante a chamada conquista das Américas”. Em 30 de junho de 2020, o Vaticano anunciou a criação de uma Conferência Episcopal da Amazônia, “para dar uma resposta oportuna ao grito dos pobres e da […] Mãe Terra”. Em 20 de setembro de 2021, o Papa renovou este arrependimento em uma carta ao povo mexicano por ocasião do 200º aniversário da independência do país.

Tudo isso já foi dito e redito em Roma e, é claro, também por todo o mundo. De 2013 a 2023, Francisco visitou dez países da América Latina. No entanto, nem assim tudo está seguindo como deveria no reino terrestre da Igreja Católica nessa parte do globo. Os fiéis se afastaram da igreja diante das incoerências morais de dois pesos e duas medidas. A Igreja mexicana recentemente reconheceu isto [2]. “Escutamos pouco ou nada as crianças, adolescentes, jovens, pessoas que vivem nas ruas, homossexuais, mulheres que foram estupradas”. “Antes, as igrejas estavam cheias, agora” apenas “30 a 40% dos batizados vão à missa”. Outra fratura é que o povo católico se recusa a fechar os olhos para a pedofilia de certos padres. O Papa se deu conta disso no Chile. Sua viagem, em janeiro de 2018, não ocorreu como deveria. Ao retornar à Santa Sé, ele fez um mea culpa. “Reconheço que cometi erros graves na avaliação da situação”, escreveu ao Cardeal Sean O’Malley, responsável pelo arquivo relativo aos casos de abuso sexual por parte de clérigos. Ele recebeu uma delegação de vítimas e pediu seu perdão. Trinta e um bispos chilenos foram convocados e ouviram sermão em Roma do Santo Padre, nos dias 15 a 17 de maio de 2018. Em junho de 2018, o Vaticano enviou dois sacerdotes para implementar uma política de reparação das vítimas pelo abuso sofrido. No México, vozes estão denunciando o silêncio de sessenta e três anos do Vaticano sobre os abusos da congregação dos Legionários de Cristo e seu fundador Marcial Maciel. Em meados de março de 2023, isso levou a um novo puxão de orelha de membros da igreja, por parte do Vaticano.

O último espinho nesse caminho ao calvário: vários políticos não estão satisfeitos com a reabilitação dessa palavra em tom de contestação política do Papa. Andrés Manuel López Obrador, em 2021, “implorou” ao Santo Padre que pedisse desculpas pela evangelização agressiva que acompanhou a colonização. E mais recentemente, Daniel Ortega, na Nicarágua, declarou guerra contra a Igreja Católica. Após a condenação do Bispo Rolando Álvarez a 26 anos de prisão e da expulsão de religiosos, as relações diplomáticas com o Vaticano foram interrompidas.

Ernesto Cardenal, sacerdote, poeta, ministro sandinista, banido da Igreja por João Paulo II, e da Nicarágua por Daniel Ortega, foi reabilitado um ano antes de sua morte, em fevereiro de 2019, pelo Papa Francisco. “Ele é”, declarou ele, “um milagre de Deus, (…) ele revoluciona a Igreja e o Vaticano”. Resta convencer os fiéis de uma Igreja que não consegue mais mantê-los…

Notas

 Texto publicado originalmente em francês, em 22 de março de 2023, no site Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “François, dix ans pape, dix ans de contestation en ses terres latino-américaines”. Disponível em aqui. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

[1] Processo de beatificação iniciado em 14 de outubro de 2018.

[2] Conferir em La Croix, 24 de fevereiro de 2023, p. 17.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.