O desabafo de um jornalista de Ponta Grossa, no interior do Paraná, realizado por meio de uma postagem no Twitter no dia 11 de abril, pouco tempo depois do Dia do Jornalista, infelizmente tem algo de revelador sobre o jornalismo nos dias atuais. Ou, ao menos, sobre um tipo de jornalismo. Felipe Gustavo Liedmann usou a rede social para denunciar a censura sofrida por parte do jornal Diário dos Campos que, sem qualquer pudor, decidiu retirar do ar uma reportagem apurada e produzida pelo profissional sobre o fato de um clube esportivo local ter investido na contratação de um atleta denunciado pelo Ministério Público Federal de Goiás por envolvimento em um sistema de fraude nos resultados da série B do Campeonato Brasileiro.
Antes do caso registrado no Paraná, em março deste ano, o jornalista Leandro Schmitz foi demitido pela Folha Metropolitana de Joinville (SC) poucos minutos depois de ter publicado uma notícia denunciando as condições degradantes a que eram submetidos trabalhadores em uma obra do Centro de Bem-Estar Animal da cidade. Diferente de Schmitz, o jornalista paranaense sofreu um tipo de violência menos incisiva, mas tão nefasta e danosa quanto. Em ambos os casos, o ‘peso do capital’ parece ter falado mais alto que o direito constitucional à informação.
No Twitter, Liedmann cita que provavelmente a censura tenha sido fruto da pressão de algum patrocinador. “É inaceitável que o jornalismo continue se submetendo a esse tipo de situação. Eu jamais vou aceitar atuar profissionalmente em um ambiente assim. Prefiro deixar o jornalismo do que passar por esse constrangimento novamente”, expôs.
Ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná, o jornalista lamentou o fato de nem os profissionais que se dedicam à cobertura esportiva estarem livres da violência contra os trabalhadores da imprensa. Sobre essa questão, em estudo sobre o tema publicado em 2021 apuramos que depois da cobertura política, de manifestações públicas e de segurança pública, jornalistas que atuam na cobertura de temas esportivos estão entre os grupos mais vulneráveis a ataques no país.
No entanto, o aspecto mais gritante da situação exposta pelo jornalista é o ato de censura que, ainda em 2021, chegou a ser o principal tipo de violência cometida contra profissionais do jornalismo no Brasil – conforme aponta relatório elaborado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ).
Lamentavelmente, a censura se trata de um traço que está na gênese da imprensa nacional, haja vista que o primeiro periódico a circular oficialmente no Brasil Colônia, a Gazeta do Rio de Janeiro, se limitava a veicular somente as informações que atendiam aos interesses da coroa portuguesa. Depois disso, novos capítulos da mordaça imposta à divulgação de informações no país foram sendo acrescentados durante a chamada ‘república velha’, no Estado Novo de Getúlio Vargas, com os Atos Institucionais durante a Ditadura Militar e mais recentemente, no governo de Jair Messias Bolsonaro que censurou frequentemente a Empresa Brasileira de Comunicação sem qualquer pudor.
Como um país democrático, o Brasil possui uma Constituição Federal, promulgada em 1988 e conhecida como a ‘Constituição Cidadã’, e que condena práticas de censura e cerceamento, uma vez que obstruir a livre circulação de ideias e de informações de interesse público trata-se de uma afronta aos direitos fundamentais dos cidadãos, a saber: liberdade de expressão, liberdade de imprensa e direito à informação.
Segundo o Artigo 220º da Constituição Federal, “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. O mesmo documento estabelece ainda que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística” e veda “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Dos impactos sobre a atividade
No que se refere aos impactos diretos sobre a atividade jornalística, pesquisadores como Sallie Hughes e Mireya Marquez-Ramirez (2018) refletem que nem sempre a ausência de ataques diretos a jornalistas (assassinatos, agressões, etc…) equivale a não imposição de restrições sobre os profissionais.
De acordo com as pesquisadoras, o clientelismo no nível mais local pode ser até mais eficiente no controle da atividade jornalística do que ameaças como a censura ou outras formas diretas de ataque. Dessa forma, as ‘trocas de favores’ e outras dinâmicas envolvendo poderosos, típicas de práticas de viés coronelista, acabam operando como um sério fator de restrição à liberdade de imprensa.
Richard Sambrook (2016), também considera que o fato de não existirem vítimas evidentes de violência não equivale a dizer que jornalistas que busquem atuar com independência estejam livres da repressão em certos contextos.
Texto originalmente publicado em objETHOS.
Notas
Na mesma linha, Jos Midas Bartman (2018) destaca que diferente de um correspondente que atua em uma região de potencial risco e/ou conflito, o jornalista local nem sempre pode simplesmente deixar a atividade. Quando isso ocorre, não é incomum que profissionais apelem para a autocensura como uma estratégia para mitigar riscos. O problema é que se o próprio jornalista se impõe estes limites, é para a sociedade que a informação deixa de chegar em sua forma plena.
Por que o Jornalismo não deve se calar ou ser calado?
Nas sociedades contemporâneas, o Jornalismo produz uma forma social de conhecimento (MEDITSCH, 1997) que é essencial para que as pessoas orientem suas decisões, tanto nas questões cotidianas, quanto para definir democraticamente o futuro político das nações em que vivem.
Dessa forma, a atividade jornalística exercida com ética, responsabilidade, comprometimento e sem quaisquer restrições tem muito mais a oferecer à sociedade – e também às empresas de comunicação, que lucram com a qualidade do jornalismo – do que outras formas de difusão de dados e de versões sobre a realidade cotidiana.
Voltando ao desabafo do jornalista de Ponta Grossa, resta o apelo ao bom senso: “A quem acompanha o jornalismo diariamente: selecionem bem a fonte de informação de vocês. A quem quer entrar um dia nessa área: tenham força mental e não se submetam a tais constrangimentos”, aconselha o jornalista que escolheu não suportar a censura calado.
Bibliografia consultada:
BARTMAN, Jos Midas. Murder in Mexico: are journalists victims of general violence or targeted political violence?. Democratization, London, Vol. 25, Nº. 7, 1093-1113, 2018. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13510347.2018.1445998. Acesso em: Abril, 2023.
COTTLE, S.; SAMBROOK, R.; MOSDELL, N. Reporting Dangerously – Journalist Killings, Intimidation and Security. London: Ed. Palgrave Macmillan, 2016.
HUGHES, Sallie; MÁRQUEZ-RAMIREZ, Mireya. Local-level Authoritarianism Democratic Normative Aspirations and Antipress Harassment: predictors of threats to journalists in Mexico. The International Journal of Press/Politics, Newbury Park, Vol. 23, Issue 4, 539-560, Agosto, 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/326784585_Local-Level_Authoritarianism_Democratic_Normative_Aspirations_and_Antipress_Harassment_Predictors_of_Threats_to_Journalists_in_Mexico. Acesso em: Abril, 2023.
MEDITSCH, Eduardo. O Jornalismo é uma forma de conhecimento? Biblioteca On-Line de Ciências da Comunicação, Covilhã: BOCC, 1997. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/meditsch-eduardo-jornalismo-conhecimento.pdf. Acesso em: Abril, 2023.
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Aline Rios é doutoranda no PPGJOR e pesquisadora no objETHOS.