Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Timor-Leste: entrevista com Nicodemos do Espírito Santo

“Há muito trabalho a fazer para acabar com vários estigmas e discriminação, o que só pode acontecer com uma sociedade informada”, diz. (Foto: arquivo pessoal)

Nicodemos do Espírito Santo é um jovem jornalista do Timor-Leste formado em tecnologia da informação pelo Institute Of Business, na capital do país, Díli, onde vive. Após os estudos de TI, o interesse pelo trabalho da imprensa o levou a fazer uma formação em jornalismo no âmbito de um projeto desenvolvido entre o governo local e o Instituto Camões, de Portugal. O curso foi o ponto de partida para que ele e um grupo de colegas criassem o portal jornalístico Diligente, com objetivo de promover informação pública de qualidade para seus conterrâneos.

O Timor-Leste tem uma marcante história de conflitos por independência e autonomia política, a última delas conquistada há cerca de duas décadas contra o domínio indonésio. Aos 27 anos, Nicodemos reconhece a importância da liberdade e da qualidade da imprensa na salvaguarda dos princípios democráticos de seu país. “A luta de Timor-Leste passou da libertação para o desenvolvimento nacional. Em qualquer destes combates, uma condição obrigatória: a presença de um jornalismo corajoso e forte”, opinou nas páginas do Diligente. Leia mais a seguir. 

Enio Moraes Júnior – Recentemente, você publicou um artigo sobre as dificuldades de se fazer jornalismo no Timor-Leste. Como você avalia o papel da imprensa e dos profissionais timorenses na qualidade da democracia do país?

Nicodemos do Espírito Santo – Apesar de já se notar alguma evolução nos conteúdos informativos, os jornalistas em Timor-Leste ainda enfrentam muitas dificuldades, como autocensura, dificuldade no acesso às fontes e aos dados que deviam ser públicos ou o desconhecimento e desrespeito pelo trabalho dos profissionais de comunicação social. Há também falta de coragem dos jornalistas para abordarem assuntos mais delicados, que envolvem estruturas de poder como o Governo ou de muita influência social, como a Igreja. Para além disso, a maioria das fontes não é independente e tem, invariavelmente, ligações partidárias. Quando os jornalistas precisam consultar determinadas fontes, muitas vezes não conseguem porque elas se mostram inacessíveis ou não estão preparadas para responder às nossas questões. A maioria dos profissionais tem também medo de represálias.

O acesso aos dados é difícil e muitas vezes a informação pública disponível é pouco transparente. Este ano, por exemplo, o Portal de Transparência do Governo de Timor-Leste esteve inacessível durante, pelo menos, dois meses. A burocracia que reina no país “mata”, aos poucos, a coragem dos jornalistas. Para conseguirmos uma entrevista temos de entregar, repetidamente, pedidos formais nas instituições e esperar por respostas que às vezes chegam, outras vezes, não. Outro fator de desmotivação são os salários baixos.

EMJ – Quais são os temas mais recorrentes na imprensa timorense: nos grandes jornais, portais e na televisão, por exemplo? As consequências das lutas pela autonomia do país estão presentes no noticiário?

NES – A cobertura jornalística centra-se excessivamente em temas de agenda, desvalorizando-se os maiores problemas sociais e econômicos do país. As elites e figuras de poder são presença constante nos órgãos de comunicação social, que divulgam com regularidade eventos de caráter institucional e, muitas vezes, de pouca relevância ou com pouco conteúdo informativo. No que diz respeito às consequências das lutas pela autonomia do país, apesar dos progressos, mais de 40% da população timorense vive na pobreza e são notórias as desigualdades no acesso à educação, à saúde ou ao saneamento. Ainda há também muito trabalho a fazer na área da igualdade de gênero e para acabar com vários tipos de estigma e discriminação, o que só pode acontecer com uma sociedade informada.

EMJ – Qual o espaço do jornalismo local? Há uma produção voltada para as comunidades ou grupos sociais mais específicos? Quais os temas mais recorrentes?

NES – Não existe em Timor-Leste um jornalismo livre e crítico que ouça todos os cidadãos, inclusive as minorias e os seus problemas. Além de não serem ouvidos, os timorenses não compreendem o alcance de muitas das políticas aprovadas por quem os governa. Nesse sentido, o Diligente quer produzir conteúdos de fácil compreensão para que todos os cidadãos estejam conscientes do que se passa no país.  Nestes primeiros meses, a produção informativa do nosso portal tem sido fortemente direcionada para temas estruturantes que são ainda grandes obstáculos ao desenvolvimento nacional, como a desigualdade no acesso à educação e as dificuldades no acesso à saúde, por exemplo.

EMJ – As mídias sociais mudaram e têm reconfigurado a maneira como as notícias são produzidas no mundo todo. Quais são os aspectos positivos e negativos desse fato no Timor-Leste?

NES – Um dos aspectos mais positivos trazidos pelas tecnologias e pelas mídias sociais para o Timor-Leste e para todo o mundo é a democratização do acesso à informação. Nesse sentido, é fundamental apostar na literacia mediática da população. Ao mesmo tempo, o imediatismo, a atualização permanente da informação, a presença nas redes sociais e a interação com os leitores trazem riscos e desafios associados. No nosso país, um dos maiores riscos diz respeito à desinformação e à produção de fake news. Por exemplo, no contexto político, as campanhas de desinformação online constituem uma séria ameaça às instituições democráticas e à formação da opinião pública. Os jornalistas devem estar atentos a estes desafios, mais ainda em ano de eleições legislativas, como é o caso de Timor-Leste que vai a votos já no próximo mês de maio.

EMJ – O portal Diligente foi idealizado por sete jovens jornalistas: Amandina Figueira, Eduardo Soares, Antónia Kastono Martins, Miguel Taveiro, Nívia Cristóvão e Rilijanto Viana, além de você. Quais os diferenciais do portal em relação ao jornalismo produzido no país? Como tem sido essa experiência?

NES – Como já referi, o país tem ainda muitos problemas e não consegue assegurar condições básicas para toda a população. Há muitas pessoas que não têm água nem luz em casa, por exemplo. Ademais, a desigualdade de gênero está muito presente na sociedade timorense, a educação sexual é tabu e ainda há casamentos arranjados, trabalho infantil e discriminação das minorias. Queremos contribuir para uma democracia que respeite os direitos de todos e diminua as desigualdades do nosso país, com uma informação imparcial que possa ajudar as pessoas através de uma aposta forte em trabalhos de investigação e reportagens. Como primeiro website informativo totalmente em português em Timor-Leste, uma das nossas principais preocupações é produzir conteúdos de fácil compreensão. Para isso, o site apresenta um glossário em cada publicação. O leitor apenas tem de passar o mouse ou clicar em cima de uma palavra destacada numa cor diferente para ficar a saber o seu significado.

EMJ – Como funciona a preparação dos jornalistas para o exercício da profissão no Timor-Leste? Há tanto cursos de curta como de longa duração?

NES – Nas Universidades de Timor-Leste há cursos de Comunicação Social, com duração entre quatro e cinco anos.  Há também formações específicas ministradas por diversas instituições e organizações. São ações de formação mais curtas, com cerca de seis meses de duração. 

EMJ – De que forma você imagina o jornalismo no Timor-Leste daqui a dez anos? O jornalista pode ganhar um novo status no país? Que temas serão pautados? 

NES – Imagino e desejo um jornalismo consolidado, que tenha conquistado o respeito do povo timorense e de todos os leitores. Espero também que daqui a 10 anos os jornalistas sintam que contribuíram para um país mais justo, que ajudaram na construção de uma consciência mais crítica, dando voz àqueles que não têm voz em Timor-Leste.

Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.