Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cobertura do aumento das passagens

Convenientemente anunciado no dia 7 de janeiro, em meio às férias discentes, o reajuste de 8,66% nas passagens de ônibus na grande Recife não demorou a causar reação. Situação que abrangeu mais 13 cidades do Brasil (oito delas, grandes capitais), impactando diretamente sobre uma população aproximada de 30 milhões pessoas, sem levar em conta a influência desses polos junto ao metabolismo social dos demais municípios que compõem os tecidos urbanos metropolitanos. Neste sentido, longe de ser um fenômeno pontual ou fragmentado, tal questão se configura numa estratégia territorialmente abrangente, senão articulada. Visto isso, tomada aqui a referência à realidade recifense, este artigo apresenta conflitos e contradições na luta por reconhecimento e garantia de direitos e a forma como esta dinâmica é idealizada, embalada e etiquetada sobre a forma-mercadoria de ‘opinião pública’ pela mídia impressa.

A reação ao aumento nas passagens não esteve estampada nas páginas das publicações diárias, mas se deu nas ruas. Já no dia 11/2, discentes ligados a entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União dos Estudantes Secundaristas de Pernambuco (Uespe) organizam passeata e manifestações na área central da capital, atraindo a atenção da polícia e da imprensa local, que, por seu turno, cumpre papel que fatalmente remete à categoria althusseriana de aparelho ideológico de Estado. Mídia e Estado ideologicamente permeados pela lógica do mercado, fazendo com que aquela, que exerce grande poder na difusão de valores e na formação de consensos, legitime a intervenção deste que detém o monopólio do uso da força e a utiliza, não raro, mais avidamente sobre certos segmentos, agrupamentos ou classes sociais. Uma dinâmica que circunscreve fortemente regras no campo de conflito que envolve a luta por direitos e que tem papel fundamental no modelo racional de gestão social da miséria.

‘Trânsito parado, lojistas acuados’

O movimento de insurgência que defende a bandeira do transporte público de qualidade, apesar de pacífico e legítimo, não é unânime entre os pedestres e os motoristas, posto que as manifestações resultam em engarrafamentos. Explorada na esfera do tempo imediato, a mobilização social assume a identidade de transtorno coletivo. O Jornal do Commercio (JC) do dia 12 de fevereiro chega a anunciar que o trânsito redundante da manifestação estende-se do centro da cidade – onde ocorre a paralisação do trânsito pelos reivindicantes – até a Praça de Boa Viagem, um percurso de aproximadamente 11 quilômetros. Contudo, o próprio jornal elenca, entre brados oposicionistas, simpatizantes ao movimento. Dentre eles, até mesmo alguns motoristas. Já no dia seguinte, ainda o Commercio anuncia que o aumento instiga a instauração de procedimento preliminar por parte da promotoria de Defesa dos Direitos do Consumidor do Ministério Público de Pernambuco.

O episódio, de múltiplas facetas, acaba restrito na manchete cunhada pelo jornal Folha de Pernambuco, do grupo de Eduardo Queiroz Monteiro, do dia 12, que bem poderia ser reaproveitada no topo de uma matéria sobre enchente ou abertura de vala nas ruas centrais de Recife: ‘Centro parado por cinco horas’. O jornal chega a citar o caso de uma motorista que, presa no transito, desespera-se por sua filha de três anos, que está ‘(…) no hotelzinho desde às três horas da tarde (…)’. ‘(…) estou sem poder me deslocar. Isso é um absurdo’, teria dito.

Mas é diante dos desdobramentos do dia 11 que os discursos assumem postura mais clara. Quiçá, nem mesmo a Polícia Militar, que acompanha a primeira passeata e faz-se presente no foco da interdição do Cais de Santa Rita, chegando a articular um ultimato, mostra-se mais intolerante. Como de hábito, o âmago da manifestação per si, não passa de um ilustre ausente nas manchetes e nos leads das matérias. Vide o lead subsequente à manchete ‘Mais uma tarde de caos no trânsito’, do Diário de Pernambuco, dos Associados, do dia 14 de janeiro:

‘Trânsito parado, pedestres perdidos e lojistas acuados. Esse foi o retrato de mais uma tarde de caos no Centro do Recife. Pela segunda vez nesta semana, a cidade parou. Quem tentou circular, ontem, de carro ou ônibus pelas principais vias da região perdeu tempo e a paciência. Mais uma vez, entidades estudantis, com o apoio de alguns movimentos e partidos de esquerda, realizaram uma manifestação contra o reajuste de 8,66% nas passagens de ônibus. Quem tentava furar os bloqueios era impedido.’

Manter-se na superficialidade do fenômeno

A julgar pela primeira frase, a matéria versa sobre um atentado à bomba. Remete ainda as convencionais coberturas dos efeitos das reações do crime organizado numa comunidade sitiada. Trata-se de uma trova coringa, três orações para a criminalização de quem precisa ser criminalizado. E assim, supostamente, vai se abrindo uma fissura entre aqueles que estão ao lado da ordem e os que devem ser combatidos.

No mesmo dia, sobre o assunto, o Jornal do Commercio e a Folha de Pernambuco mancheteiam, respectivamente: ‘Novo protesto, mais transtornos’ e ‘Estudantes param o centro novamente’. Desta vez, o JC, do Grupo João Carlos Paes Mendonça, abre mão do relativo equilíbrio dos depoimentos colhidos no contexto da manifestação do dia 11. Permeiam a matéria depoimentos que dão conta da dificuldade de ‘(…) pensar em apoio ao protesto tendo que andar a Conde da Boa Vista inteira depois de largar do trabalho’. Uma aposentada teria afirmado que ‘Pagar R$ 2 de passagem é um assalto. Mas pagar passagem a R$ 2 e ter que descer para andar quilômetros porque tem um protesto acontecendo, deve ser bem pior’.

E a manifestação, abordada sem nenhuma significação, sem causalidade justificada, acaba, por fim, apresentada como o verdadeiro estorvo. Pior até que as causas que a motivam. Causas que, a bem da verdade, quase são esquecidas na cobertura, em detrimento de uma nervosa e curiosa pressão por ações efetivas de repressão. Repressão não necessariamente policial, mas da opinião pública, cujo efetivo é maior que qualquer batalhão. Não são questionadas a qualidade dos serviços, o impacto do aumento nas condições de vida do crescente subproletariado, a falta de transparência na gestão de uma política pública como a de transportes, que é um ponto nodal atualmente no debate cera do planejamento urbano. Muito menos existe a crítica às opções aristocráticas feitas nos centros urbanos pelo transporte individual em detrimento do transporte coletivo, da periferização das classes populares, que encontram sua forma de sobrevivência deslocando-se para os centros urbanos, onde se concentram os empregos, bem como imóveis vagos, que servem para a especulação imobiliária, ao invés de cumprirem sua função social. Prefere-se, ao contrário – como delata a manchete de capa de 1º de fevereiro de 2011 do Diário de Pernambuco – anunciar a ‘Volta ao trânsito’, e manter-se na superficialidade de um fenômeno tão rico em mediações.

Leis e possíveis punições

A abordagem negativa da mídia pernambucana sobre os eventos que envolvem protesto não é novidade. No dia 12 de abril de 2010, o jornal Diário de Pernambuco publicou a matéria ‘Até onde vai o direito de protestar?’, com o intuito de refletir as mobilizações populares que ‘atrapalham a vida dos cidadãos’, principalmente após aumento da tarifa de ônibus, quando se costuma paralisar o trânsito das vias de maior fluxo em Recife.

Destacando o protesto como um ato de poucos, o jornal resume a mobilização como uma descabida busca por atenção, mas não diz atenção de quem. Apenas afirma que protestar prejudica uma maioria formada por pessoas comuns. O cuidado de distanciar manifestantes do resto da população, inclusive atribuindo rótulos de partidários e de esquerda, torna-se mais importante do que explicar com detalhes o contexto do protesto.

‘Em minutos, todas as câmeras estão voltadas para a confusão e o principal objetivo de qualquer protesto, chamar a atenção, é rapidamente alcançado. Mas tudo tem seu preço. E muitas vezes os cidadãos comuns, que não raro nada têm a ver com a confusão, pagam o custo da liberdade de protesto exercida por uma minoria.’

Em seguida, o jornal parte para o discurso legalista numa tentativa de criminalizar as manifestações. São citadas leis e possíveis punições, como multa ou prisão (de 15 dias a três meses), ‘para quem perturbar o trabalho ou o sossego alheio com gritaria e algazarra ou abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos’.

O ódio privado dos interesses coletivos

O discurso jornalístico tenta se legitimar com a voz de contraponto, no caso, a fala da professora de Direito Adriana Rocha, que difere regra de exceção ao explicar que cada caso merece um julgamento. Durante a explicação, a jurista explica qual a melhor forma de protestar sem ferir a lei:

‘Para ela (Adriana), nem todo protesto que interrompe o fluxo de veículos é ilegal. Uma manifestação que impede a passagem de carros por um período de tempo restrito, sem causar grandes transtornos ao trânsito, não pode ser colocado no patamar de ilegalidade de um protesto onde o bloqueio de avenidas dura horas.’

Ao final, aponta as autoridades policiais e judiciárias como as responsáveis por interpretar cada caso, muito provavelmente, após reprimir o protesto, que parece ser o mais importante, independente de se tratar de uma cobrança por segurança, acesso ao transporte público, moradia, políticas sociais. No vácuo das instituições democráticas, de um canal de diálogo que represente os anseios populares, a polícia parece ser responsável por esconder a baixa institucionalidade Estado na nossa jovem democracia. E tal como foi ovacionada na ocupação dos morros cariocas, tratada sob abordagem hollywoodiano pelos holofotes midiáticos, a polícia parece remediar todos os males e patologias sociais.

Não à toa, coberturas como essas redundam em algumas cartas de leitores que chamam atenção pelo tom exasperado e reacionário, como a missiva de um leitor olindense, publicada nos jornais Folha de Pernambuco e Jornal do Commercio, em 20 de janeiro:

‘É incrível a falta de autoridade da polícia contra os constantes bloqueios de protestos populares no Centro do Recife e em rodovias de intenso tráfego. (…). Moral da história: milhares de pessoas são cerceadas do direito de ir e vir, por causa de meia dúzia de perturbadores da ordem pública. Sugiro que deveria haver uma tolerância de uns 15 minutos em cada protesto, e a partir daí a polícia partiria para a força’.

Disponibilizada de forma estendida na Folha, o texto sugere exatamente o que as manchetes parecem querer expressar, mas que encontra espaço mais apropriado na seção do leitor; que, embora denominada ‘do leitor’, não está imune aos processos de enquadramento e padronização estabelecidos na grande imprensa.

Na trajetória de afirmação dos direitos humanos, a imprensa tem papel fundamental, alimentada e retroalimentando a conquista da liberdade de expressão, catalisando em tantos momentos da história a esperança, a organização política, a afirmação de novos possíveis e o poder de transformação que permeia o cotidiano. Como aponta Venício Lima, em seu Liberdade de Expressão X Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia (2010), no processo de concentração dos meios de comunicação, a defesa que passou a vigorar na mídia foi a da liberdade de empresa. Neste sentido, faz-se necessária a garantia do direito à comunicação e a democratização de seu acesso como emissor, que se coadune com valores emancipatórios. Quem sabe assim a realidade passe a ser representada sob outra lente, por outras perspectivas, e transmita para o conjunto da sociedade uma visão crítica, que desconstrua o ódio privado contra os interesses coletivos e abra os caminhos para uma organização social mais justa e igualitária.

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Respectivamente, mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, assistente social e pesquisador do Núcleo de Estudos e Ações sobre Democracia e Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco e estudante de Jornalismo